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Os dias todos têm escorrido pelo suor frio das minhas mãos. Eu, sempre, tentando segurar; tentando prender os dias um pouco mais; tentando fazer dos dias alguma coisa. Eles, por outro lado, seguem escorrendo pelos meus dedos, um líquido invisível e denso, como a minha vida: invisível e densa.
Meu cérebro, também, amolecido; sem conseguir concretizar a concentração. Olho uma, duas, três vezes para as palavras no título do texto "Global capitalism and critical awareness...". O que significa awareness mesmo? Meu cérebro também está líquido, derretido. Eu olho para as crianças uma, duas, três... Dez vezes e sei: elas não estão aware do que aqui está e, pior, do que está por vir.
O meu dia só para de escorrer quando tenho as crianças. Elas não têm awareness, mas têm o ardor da vida. As crianças têm a honestidade mais pura de todas: a de quem sabe tudo, mas sem esperteza alguma. Ensinam lições a mil, mas não têm a esperteza de pensar em si em detrimento do outro. As crianças dão valor inestimável à vida.
Depois, quando me despeço, a dor no peito me acomete. Olho o pai, penso no vô e olho pra mim. O tempo correndo, o dia escorrendo e eu aqui. Estou fazendo o quê? A gramática segue aberta sobre a mesa, todo mundo com suas certificações internacionais, todo mundo com seu tempo produtivo, todo mundo bem. Os dias dos outros não parecem escorrer gosmentos e densos pelos dedos, só os meus.
Eu poderia jurar que meu crânio está oco, não fosse pela minha insistência mental em lembrar do horror. Já são para mais de dez dias e eu continuo repetindo a narrativa em minha mente: a menina, as pessoas, o horror, a raiva, o medo, o horror, a incredulidade, o horror, Deus. E a menina? Junto a ela, outras quantas? A mente dando voltas e eu querendo respostas, querendo saber a quem devo questionar, querendo saber que oração devo fazer, querendo saber quem vai pagar, querendo saber.
Pensei em fechar bem os olhos, me concentrar, e tentar me comunicar com quem quer que seja, quem quer que tenha as respostas para me dizer o porquê de algumas vidas valerem tanto e outras nada, eu preciso saber o que há. Enlouqueci? Se fecho os olhos, quem encontro são os mil-duzentos-e-setenta-e-um notificados de ontem. Mil. Duzentos. E. Setenta. E. Um. Se cada uma dessas pessoas valesse um real, será que as teríamos jogado fora assim?
Ane Karoline-
ainda em quarentena.