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dia tal, mês tal, algum ano do passado. 

Venho noites sem dormir com a mente atormentada pelo que tenho a te dizer. 

Isto aqui é um caso de vísceras. 
É um caso visceral. 
É um caso de morte das vísceras. 
Você pode estar sob risco eminente de morte. 
Você pode, também se perguntar quem sou, afinal, para estar com a autoridade em falar sobre vísceras. 
Você pode, então, ter a certeza de que sou alguém com vísceras, portanto, sei quando estão morrendo. 

Então, sente-se e ouça. É urgente. É urgente porque não sei por quanto tempo essa terrível mordaça vai me deixar escrever tudo isso, não sei quando ela vai me parar - o único fato é que vai. É necessária tanta rapidez quanto possível. Você me ouve bem? Não posso parar de dizer isso agora, não sei por quanto tempo a minha veia criativa vai ser capaz de ser mais visceral que a minha veia julgadora - essa tal tem sempre me estrangulado. Pois bem,  se ainda não se sentou, sente-se. O que estou prestes a dizer é catastrófico. 
O fato é cristalino.
Você foi contratado por alguém depois de você ter dito que uma de suas qualidades é o perfeccionismo, por isso, peça suas contas já. Escreva um e-mail, ligue, escreva uma carta, se for necessário. Retire suas coisas do armário, organize sua sala, pegue sua mala e vá embora. 
Não sei o que te falaram, mas não é assim. Não sei se você leu a respeito, se viu filmes ou se viu séries. Não sei qual foi a referência desumana e irreal a qual você, provavelmente inconscientemente, se apegou, mas não é assim. Não é construtivo. Perfeccionismo não é uma qualidade.
Eu sei. Você se orgulhava disso. Aliás, te ensinaram a se orgulhar de uma mentira. De uma neurose. Perfeccionismo é uma neurose. Não, não sou psicóloga, não sou coisa alguma... Mas tenho vísceras e entendo delas. Perfeccionismo é um parasita que se ocupa unicamente de comer nossas vísceras. E dói. E corrói. E enlouquece. E mata.  E depois? A gente é enterrado como insatisfeito, aquele para quem nada estava bom. 
Acredite,
a regra é clara.
Não existe o perfeito. A perfeição é a imperfeição. Agora, se a perfeição não existe, ser perfeccionista é ser de duas uma: tolo ou falso. O tolo é aquele que não sabe, mas acha que sabe, vive dentro da caverna de Platão ainda. O falso é que aquele que sabe, mas finge não saber e engana os outros. E aí, escolha o teu. 
Eu, de minha parte, bem sei agora que nada vai me adiantar ter sido tola ou falsa. O complicado é que parece que agora é fora de moda ter defeitos, ou melhor, assumi-los. Gente de verdade não vende mais, diria um publicitário. Agora pensando cá, vejo que já que não quero mesmo me vender,  já que não há quem vá me comprar, vou deixar as sobrancelhas crescerem e, tem mais, vou assumir minha caligrafia: é esta e pronto.  O perfeccionismo é um plano para impedir a gente de se mover e ponto final.
Antes do ponto final, pergunto:
E você, acha que tem obtido algum lucro nessa maquina de se vender? 

com amor, eu. 

Terminei de ler a carta em silêncio,olhei para a mamãe que, com olhos marejados, encaixotava as coisas de Vó Alminda. Vi que a carta estava endereçada a um tal Alfredo e  resolvi puxar assunto 
- Mãe, quem era Alfredo?
- Não sei. Pode ter sido algum amigo antigo de sua avó, por quê?
- Encontrei um bilhete para ele. 

Ela não respondeu. Dobrei o papel, já desgastado pelo tempo, e o devolvi para o envelope parto intitulado "Cartas a serem reescritas antes de enviar".

Olhei minhas próprias sobrancelhas finas no espelho, vi exatamente o ponto onde Vó foi amordaçada: no final. Concordei em silêncio:  O perfeccionismo é um plano para impedir a gente de se mover, impedir a gente de se ver. 

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