O dia estava nublado, com um vento frio a despertar calafrios. Os corpos dos três homens eram engolidos pelas chamas em frente à igreja de pedra do vilarejo. A multidão, com pedras e paus nas mãos, incitava as labaredas em sua dança mortal.
Ester correu o mais rápido que uma mulher de 62 anos, com as pernas inchadas pelas varizes, poderia correr. Ela conseguiu chegar à porta da casa, que ficava na estrada que seguia até o vilarejo.
- Os homens! – gritou Ester, a voz rouca e fatigante. – Os homens!
As outras três mulheres dentro da casa olharam a imagem da matriarca em desespero e não tiveram muita reação se não se assustarem com os gestos de Ester.
   Quando estava prestas a abrir a boca para enxotar mais palavras, a ponta de uma estaca de madeira brotou de seu peito. A preocupação no olhar das outras mulheres deu lugar ao medo. Homens com tochas, paus, pedras, inchadas e garfos abriram caminho por cima do corpo ensanguentado da velha, que ainda se debatia no chão de madeira rústica. Eles agarraram as mulheres e começaram a bater nelas com as mãos e pedaços de madeira. Quebraram tudo o que viram pelo caminho; a mobília, os utensílios, vasos de planta e ornamentos.
   Um dos homens lançou um lampião contra a mobília e o óleo fez o fogo se espalhar rapidamente por toda a parte.
Helena vinha da floresta com uma cesta cheia de folhas e ervas para preparar chá e produzir fragrâncias. De longe, ela ouviu os estalos provocados pelo fogo na madeira. Quando estreitou a vista, percebeu a casa de dois andares, construída por seu pai e seu tio, sendo consumida por labaredas vermelhas e expelindo uma fumaça negra para o alto.
   Ela largou a cesta que trazia e começou a correr em direção ao horror diante de si. Quando se aproximou da casa, começou a gritar em desespero o nome de sua mãe, o da tia e o de sua prima. Também chamou pelo nome do pai, do tio e do irmão mais velho.
   Antes que pudesse continuar, uma mão grossa e áspera tapou sua boca e um braço forte a agarrou pela cintura, afastando-a daquele cenário.
   Sarah, a mais jovem da família, foi brutalmente morta ao ser arrastada pelos cabelos durante o caminho até a praça do vilarejo. Sua mãe e sua tia tiveram as roupas rasgadas e foram levadas por uma multidão enfurecida ao local onde os corpos dos três homens não ardiam mais.
   Com uma mão grande impedindo sua boca de soltar um grito, Helena olhava nos olhos daquele homem rústico de cabelo e barba engrenhados.
- Não lhe farei nenhum mal – disse o homem. – Promete não gritar se eu soltar a sua boca?
   A garota assentiu com a cabeça, tranquilizada pela voz calma do homem.
- Seu pai me enviou, Helena, para lhe proteger.
- Quem é você? – perguntou Helena, ainda receosa.
- Meu nome é Nicolaj Ulrich. Sou amigo de seu pai desde que cruzávamos os mares em busca de riquezas. Estava passando por perto, então resolvi ver como estava meu velho amigo. Para a minha desgraça e a de seu pai, encontrei-o pouco antes de o terem levado para ser julgado.
- Como sabia onde eu estava, Sr. Ulrich?
- Seu pai me disse que estaria na floresta como costuma fazer todas as manhãs. Infelizmente, cheguei tarde demais para proteger sua família daquele grupo de fanáticos.
- Minha mãe! Minha prima e minha tia! O que vai acontecer a elas?
- Temo que não possa fazer nada por elas, Helena. Desculpe.
   As lágrimas vieram junto com a dor de quem sofre com a ignorância e intolerância dos homens.
- Vamos, Helena! Preciso lhe tirar deste lugar, para isso temos que voltar ao vilarejo onde está minha carroça.
    Nicolaj entregou à garota sua capa com capuz para que ela pudesse ficar longe dos olhares inquisidores. Então seguiram a pé a estrada de terra que daria em um aglomerado de casinhas de madeira, estalagens para viajantes e tavernas.
   A carroça de Nicolaj com cobertura de lona estava em frente à estalagem local. Ele era um caixeiro viajante que vivia de cidade em cidade comercializando seus artigos e procurando por novos.
   Helena permaneceu debaixo da lona amarelada que cobria a carroça e protegia os produtos negociados por Nicolaj, enquanto ele foi buscar os cavalos para poderem partir.
Uma agitação na praça chamou a atenção de Helena.
   Ela espiou por um pequeno buraco na lona o que estava acontecendo ali perto. Sua mãe, Martha, e sua tia, Abigail, estavam sendo levadas até o alto da escadaria da igreja de pedra por um grupo hostil de homens.
   Uma multidão agitava as mãos no ar, gritando “morte”, “morte às bruxas”.
   Martha e Abigail foram colocadas, com as mãos atadas para trás, sobre bancos de madeira. Do alto viam duas cordas com uma forca trançada.
   Um homem que carregava uma bíblia preta nas mãos pediu silêncio para a multidão, então começou a falar:
- Vemos aqui duas esposas de Satã tomadas por espíritos que as fizeram, também, corromper seus bons homens. Para eles, que tiveram seus corpos purificados pelo fogo, Deus será misericordioso e salvará suas almas. Elas, que abraçaram a fé pagã de demônios e de falsos deuses, a sentença levará suas almas para o poço profundo dos pecadores para sofrerem por seus atos contra Deus.
   O homem abriu a bíblia e passou a recitar trechos em latim. A corda foi amarrada em volta do pescoço das duas mulheres e a multidão começou a jogar paus e pedras em direção aos seus corpos.      Dois homens se aproximaram por trás e, quando o sacerdote terminou de recitar e fechou a bíblia, eles chutaram os bancos sobre os quais estavam Martha e Abigail.
   Helena quase perdeu os sentidos quando viu o pescoço de sua mãe quebrar quando seu corpo despencou. Sua tia ainda se debateu por alguns segundos até que seu sopro de vida também a deixou.
- O fogo queima os pecados – disse o sacerdote, com uma tocha na mão.
   A chama pareceu congelar, os sons desapareceram. Helena não sentia frio nem calor. O tempo havia parado de repente, ela era a única acordada.
- Menina! – soou uma voz doce.
   Helena se virou bruscamente para olhar na direção da voz.
- Quem é você? – disse Helena para a velha que entrara debaixo da lona da carroça.
- Sou apenas um mensageiro.
- O que você quer? – Helena espiou o lado de fora e viu Nicolaj congelado no tempo com seus dois cavalos. – O que está acontecendo?
- A mensagem que trago é simples: você é o espírito profetizado. A herdeira das eras que trará o equilíbrio ao mundo.
   Helena continuava sem compreender, a confusão assolava sua mente.
- Eu não entendo! Por que isso está acontecendo? – As lágrimas começavam a brotar dos olhos e escorrer pelas curvas do rosto.
- A natureza trabalha de forma sábia, menina. Tudo o que está acontecendo não é obra do acaso.    Mesmo a presença do cacheiro amigo de seu pai não é coincidência, ele foi escolhido para ser seu protetor, mesmo que não saiba disso.
- Por quê? – questionou Helena em prantos.
- Não chore, Helena. Sua tarefa neste mundo é grande. Você é a criança prometida; a filha de Pandora que trará paz aos planos desta terra. A natureza a guiará e irá lhe inspirar nos momentos certos para que você possa reunir os instrumentos necessários à sua jornada.
   A velha estendeu a mão. Quando Helena a tocou, o mundo pareceu ser sacodido e o tempo andou novamente.
   A velha desapareceu.
- Vamos, Helena – disse Nicolaj. – É hora de partirmos.
   Na praça, os corpos de sua mãe e tia queimavam enquanto a carroça se distanciava mais.
   Quando saíram do vilarejo, Helena sentou-se ao lado de seu protetor na frente da carroça. Eles se aproximaram da casa, que agora era um entulho de madeira queimada. A garota ouviu um assobio provocado pelo vento em seu ouvido, então algo lhe chamou a lembrança.
   Ela pediu para Nicolaj parar a carroça ali onde estavam. Ela começou a caminhar entre os destroços de seu antigo lar. Debaixo de uma porta queimada pelas chamas, ela viu a ponta de um livro azul intocado pelo fogo.
- O que é isso, Helena? – perguntou Nicolaj, vendo que a garota trazia algo nas mãos.
- Este é o Livro das Sombras de minha família. Ele contém os segredos dos séculos.
- O que pretende fazer com ele?
- Vou usá-lo em minha jornada.

Fernando F. Morais


   A colaboração de hoje é do Fernando, um jovem autor com ideias revolucionárias e uma forma de ver o mundo bem pessoal. Ele possui outros contos, tão bons quanto o acima, e esperamos que continue a colaborar conosco. Para entrar em contato com ele você pode clicar aqui para localizá-lo no Facebook. Obrigado pela contribuição Fernando!

2 Comentários

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.