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imagem: pinterest.com |
Existe
uma ternura genuína dentro de mim. De vez em quando, ela passa dias e dias
quietinha, calada, parece até que sumiu, que morreu, que me abandonou. Quando
ela retorna, eu sinto como se fosse impossível me desvencilhar dela, como se
fosse intrínseca a mim, mas quando ela não está, sinto como se nunca fosse
voltar a encontra-la: sinto me oca. Já corri atrás dela, já li, reli, ouvi
conselhos e palestras afim de descobrir a fórmula certa para encontrá-la, para
que eu nunca tivesse que me sentir só novamente, para que eu nunca tivesse que
conviver com esse vazio terrível que é achar-se sem propósito. Foi justamente
de tanto correr na tentativa de encontrar essa ternura, que me afastei dela,
quanto mais eu a buscava, mais perdia a ela e a mim mesma. É um processo, me diziam, o
deserto vem antes do jardim florescer. Veio mesmo. O dia exato em que
joguei todas as fórmulas, todas as limitações, todos os preconceitos dentro da
lixeira, abri portas para que a ternura voltasse a me encontrar em forma de um
menininho gorducho de cinco anos andando em uma bicicleta desenfreada que
passou por cima do meu pé na porta da igreja. Ô tia, desculpa, não chora. Chorei foi mais, choramos os dois e
depois tive que explicar para ele e para a mãe dele que ele não havia me
ferido, havia me curado.
A
ternura genuína que existe dentro de mim havia se recolhido no momento em que
julguei-me capaz de entendê-la, havia se comprimido em todos os momentos em que
levantei-me contra alguém em nome dela, em cada vez que achei-me conhecedora da
verdade só porque um monte de gente pretensiosa me reconhecia como tal. A
ternura genuína que existe dentro de mim nunca me pediu para pregar minha
verdade sobre ninguém, nunca me disse que lugar de mulher é na cozinha e que
homem é um ser superior. Ela nunca me instruiu a julgar as decisões de alguém
sobre sua própria vida, nunca acelerou meu coração para que eu apoiasse mortes
ou apedrejamentos. Ela nunca, e mesmo assim o fiz, me disse como eu deveria me
vestir e nem que eu deveria recriminar quem não se vestisse como eu. A ternura
que existe dentro de mim nunca colocou condições para existir, nunca me pediu
para buscá-la dentro de quatro paredes olhando para as camisetas azuis e para
os anjos de gesso; ela é quem me encontraria, mas não ali.
Eu
não precisava ir busca-la, ela esteve o tempo todo dentro de mim, prontinha
para aquecer meu coração assim que eu permitisse: seja no sorriso do bebezinho
dentro do ônibus, seja ouvindo pela vigésima vez a mesma história da minha
vizinha com Alzheimer, seja segurando a mão enrugada da minha mãe na rua, seja
no beijo apaixonado do meu casal de amigos ou na chuva que cai e molha o chão
seco. A ternura esteve comigo desde o momento do meu milagre maior, que fora a
minha primeira respiração e estará comigo até o momento do meu último suspiro. Ela
não me julga, não me apedreja, não coloca condições e nem me diminui: me
acolhe. Descobri isso quando, com lágrimas nos olhos, decidi me desacorrentar,
lá de cima, cruscificado, ele me olhou como quem diz: vá e ame.
com todo amor do mundo,
Ane Karoline
- texto do desafio de 24 textos em 24 horas