imagem: pinterest.com |
Já
cheguei entrando com força e batendo a porta atrás de mim, como se nesse gesto
infantil eu pudesse descarregar tudo que vinha pesando dentro do meu peito. Por
sorte, não havia ninguém em casa, se o vô estivesse lá, teria gritado do seu
quarto quebra não, jóia, e depois
teria sorrido. Ele me chamava de jóia desde sempre, minha mãe gostava de contar
que no dia em que ela voltou do hospital, comigo a tira colo, ele disse: ela é muito menor do que eu esperava, mas é
uma jóia. Minha cabeça ainda doía e parecia que
tinha uma escola de samba enredo a todo vapor dentro dos meus tímpanos. Chutei
os sapatos para o canto da sala e resolvi checar meu celular, parecia estar
tocando enquanto eu subia as escadas até o apartamento – coisa que eu fazia
quando queria evitar conversas com meus vizinhos. Realmente, havia três
chamadas perdidas do escritório e uma do celular do número da Aninha – que foi
justamente para quem resolvi retornar, seja lá o que tivesse acontecido, ela me
diria com mais sinceridade e doçura que a secretária. Ela atendeu no segundo
toque:
-
Está tudo bem, Cecília? – ela parecia estar mastigando alguma coisa
-
Aham, e você? O que houve?
-
Comigo? Nada! Você está com dor de cabeça mesmo ou aconteceu algum...a cou...
coisa? – definitivamente, eram churros, ela só ficava com a boca cheia assim
quando comia churros.
-
Eu estou com dor de cabeça mesmo, Aninha. Não está comendo churros em cima da
minha mesa, né?
-
Hum... Sei não, você saiu daqui com a maior cara de poucos amigos, fiquei
preocupada.
-
Não se preocupe, só dor de cabeça. Amanhã a gente se fala, tá? – ela já parecia
mais tranquila, me recomendou três analgésicos diferentes e disse que mais
tarde ligaria.
Me
peguei pensando naquela frase por muitos minutos ininterruptos: cara de poucos
amigos. Apesar de ter errado em sua previsão – o que eu sentia era pura e
simplesmente dor de cabeça – Aninha me conhecia muito bem e deveria saber que
se as caras das pessoas estampassem quem elas realmente são, a minha seria
exatamente assim: cara de poucos amigos. Principalmente em meus dias mais
alegres, nos momentos mais felizes de minha vida, minha feição estamparia com
muita força e gratidão a minha condição de ter sempre poucos amigos. Sem contar
com meus pais, aos vinte e seis anos de idade, eu tinha exatamente cinco
amigos: minha irmã, a Carol, a tia Jô, o Luquinhas da escola, e a Aninha – que
agora, desde que o vô falecera, faz o papel de amiga mais engraçada, maluca e
cuidadosa. Cabiam todos em minha mão, assim, jamais deixaria de dar assistência
a nenhum deles, jamais estaria ocupada demais para nenhum deles e, com relação
a mim, eles sempre agiram da mesma forma: nunca deixei de ser importante.
Ao
levantar do sofá para procurar os analgésicos indicados pela Aninha, vi meu
reflexo desordenado na tela da TV desligada e pensei que, ainda que, por
diversas razões, não fosse exatamente com esses pessoas, essa é exatamente a
cara que eu ia querer sempre ter: de poucos amigos. Se o vô estivesse sentado
ali no sofá, ele me diria que qualidade
deve vir antes de qualidade, isso sim é uma jóia.