imagem: pinterest.com


Não é como se fosse uma surpresa total, era uma daquelas situações em que a gente já sabe o que está acontecendo, vê todos os sinais, mas não quer acreditar. Meu histórico infalível de sagacidade estava colidindo catastroficamente com meu outro histórico infalível de não querer acreditar em mim mesma. Eu não queria bancar a mística, bancar a bruxa, a louca ou a má, a que vê malícia em tudo, mas o fato é que eu já sabia. Olhava para aqueles olhos fundos dele, aqueles olhos que me diziam até o que ele não queria dizer, e me faziam ter certeza absoluta que eu estava me fazendo de cega. 

Ele me dizia que a coruja aparecia sempre naquele horário porque era quase noite e o ninho dela deveria ser próximo de nossa casa, dizia que era loucura minha, dizia que coruja é bicho burro que não sabe nem onde está direito, quisera seguir alguém; ele me dizia muitas coisas, o suficiente para que eu não soubesse mais o que eu pretendia falar. Eu até acreditaria na teoria dele sobre a coruja, como fazia questão de acreditar em tudo que ele me dizia, não fosse pelo fato de ela me olhar tão intensamente como quem sabia que eu havia me perdido e precisava de uma bússola para me encontrar. Eu até deixaria para lá, não fosse o cheiro doce nele e o fato de a coruja acompanhá-lo ao chegar. 

Todos os mil novecentos e dois dias, todas as malditas quarenta e cinco mil horas em que aquela aliança dourada esteve apertando meu dedo, eu soube e eu planejei o que dizer, ensaiava no trabalho, ensaiava enquanto tomava banho. Nos meus devaneios, eu estava sentada na poltrona em frente à TV segurando minha caneca cor de rosa, cheia de café, com as duas mãos; ele chegaria e eu diria: eu sei. Depois do primeiro ano, tive que mudar minhas visualizações porque ele quebrou minha caneca cor de rosa. Eu poderia ter dito logo no começo, sim, poderia, mas ele era tão doce, tão quente segurando minha mão, tão vivo, tão. Quando a coruja começou a aparecer com mais frequência, ficou mais difícil, se eu tocasse no assunto, ele ficava carrancudo, frio. Assertiva, algumas vezes a coruja chegava a pousar na minha janela como que para me chamar de tonta, como que me convidando para ser assertiva também,  aqueles olhos imensos me dizendo o que eu não queria saber. 

Noites e noites mal dormidas, crises irremediáveis, discussões que me faziam ouvir coisas as quais eu jamais achei que alguém seria capaz de dizer. Na noite número mil novecentos e dois, ele estava atrasado novamente, eu desisti de dormir e fui olhar a coruja sobre o muro, ela piava incessantemente e eu resolvi olhar mais de perto. Não quero ser mística, eu pensava, não quero ser louca, coruja é um bicho burro. Em guerra com minha própria mente, segui a coruja que voava por alguns metros e parava para me esperar. Não fomos longe, cinco casas para a direita, avistei o carro dele. A coruja pousou no muro da casa, o portão era bem aberto, a porta estava aberta e eu pude ver o menininho, que deveria ter mais de mil novecentos e dois dias de vida,  chamando a coruja como se a conhecesse. Ele tinha aqueles olhos fundos, aqueles olhos que me diziam até o que ele não queria dizer, e me faziam ter certeza absoluta que eu estava me fazendo de cega. Deixei a aliança dourada em cima do carro e parti, mais uma vez certa de que minha intuição era muito mais infalível que qualquer esforço para me fazer desacreditar de mim.

Com amor, 
Ane Karoline
- texto do desafio de 24 textos em 24h

Deixe um comentário

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.