imagem: pinterest

A gente tem tanto medo de estar devendo, tanto medo de ser cobrado pelo que fez e deixou de fazer, que quando, finalmente, decide fazer alguma coisa entra em colapso e começa a se enfiar em problema. Isso é teoria minha, não tem base científica, ela iria adorar. Formulei isso enquanto conferia pela vigésima vez no GPS o caminho que deveria tomar e vi um cara com uma lanterna sinalizando para o acostamento. Não um cara qualquer com uma lanterna qualquer, era um policial na verdade. Porra. Habilitação vencida. Antes de abrir o porta luvas, lembrei que pedi o Júnior para limpar o carro e ele tirou os documentos de lá. Porra. Fui parando, desesperado, nem desliguei o GPS e só me lembrei dele quando ouvi “recalculando rota”. Abaixando o vidro, olhei para as minhas bermudas sujas de molho do sanduíche e me lembrei da última mensagem de ano novo dela “Que você tenha o melhor ano da sua vida, mesmo que você seja um mentiroso”. Certo.

- Boa noite. - fui logo tentando agilizar o processo com o meio metro de policial que me abordava.
- Vamos descobrir agora, ligue a luz interna, por favor. Documentação em mãos.
- Esqueci em casa.
- Onde é que o senhor mora e aonde está indo a essa hora?
- Eu moro duas quadras para trás, vim comprar um sanduíche. – apontei para as bermudas sujas de molho – vim de pijama mesmo, acabei até me sujando.
- E porque o senhor pegou essa via? - Ele me olhou desconfiado. Mentiroso filho da puta, ele deveria estar pensando. Era o mesmo jeito que ela me olhava quando me questionava sobre nós, parece que me lia: mentiroso. Minto. Se for para me salvar, minto. Minto até se for para evitar a fadiga, como era com ela.
- Eu ia pegar o próximo retorno, é mais iluminado e ali embaixo está um fumaceiro desgraçado.
- Desce do carro, por favor. – ele se afastou da porta para que eu a abrisse e se alongou olhando ao redor preguiçosamente. Quando desci, tirei o celular do suporte que ficava acoplado ao duto do ar para que, por via das dúvidas, ele não visse o GPS. Ele deu uma boa olhada no carro, perguntou sobre porte de armas e me deixou ir. Se foi sorte ou azar é que eu não sei. Não sei o que eu fui procurar quando saí de casa, não sei o que eu estava procurando quando fui falar com ela pela primeira vez, mas amaldiçoo as duas vezes: continuei sem encontrar.

Depois de demorar vinte e três minutos dirigindo na velocidade da via, estacionei porcamente na garagem de casa, dei uma checada no celular e vi que o Maurício estava online, mandei uma mensagem convidando para jogar em casa na sexta, para testar. Ele respondeu rápido e eu acabei contando por alto o que tinha acontecido, longos minutos de espera se passaram antes que ele respondesse “liga para ela” e eu liguei. Liguei no impulso, coisa que não era muito minha, ela que era toda impulsiva, toda cheia das maluquices de quem não pode esperar, não pode ponderar e age de forma passional. Três toques. A voz dela era sonolenta, grogue “alô?”. Eu não disse nada, desliguei e disse para o Maurício que não liguei, que a ideia era ridícula. Madrugada de um domingo para segunda, imagina só se eu iria ligar para ela, e se o tal vendedor de seguros atendesse? Certo, ela não costumava ser do tipo que levava um cara para dormir na casa dela, mas e se agora ela fosse? Como é que eu tinha chegado a esse ponto, não sei; tão pouco saberia dizer se era adrenalina, sono ou as cervejas que havia tomado na tarde do domingo. Tudo que sabia era que o tal vendedor de seguros não atendeu o telefone dela e não ligou de volta perguntando quem era; havia uma chance de eles não estarem dormindo juntos e, de repente, isso me pareceu vital: descobrir se ela estaria dormindo com ele, descobrir se ela pintava quadros dele nu com aquele rosto roliço dele, descobrir se eles dividiam a cama e sabe-se lá o quê mais dividiam.

A coisa de pedir conselho para o Maurício era essa: ele não tem paciência e te joga logo no meio do caos. Me mandou procurá-la e, mesmo sem admitir isso para ele, eu fui sem hesitar; como se só precisasse de um cachorro de rua para me olhar como confirmação. Na hora não deu nada, ela dormiu, mas e depois? E se ela ligasse de volta? Eu ia ter que mentir de novo, que diferença isso faria à essa altura? Demorei vinte minutos, ainda dentro do carro, sujo e com frio feito um vagabundo, para conseguir decidir que, caso ela ligasse, eu diria que liguei sem querer, que esbarrei no celular, aliás, que o celular estava no bolso, eu, no bar, esbarrei no celular e nem percebi. No minuto seguinte, decidi como descobriria se estavam juntos ou não; era só isso, prometi para mim mesmo, só descobriria e depois a mandaria para o quinto dos infernos de onde ela nunca deveria ter saído.
Caminhando para dentro de casa, procurei novamente o perfil do vendedor de seguros, encontrei o telefone, abri o aplicativo de mensagens e digitei o que eu achei que seria o atestado de óbito dela dentro de mim “Tenho interesse em fazer um seguro. Podemos nos encontrar amanhã?”

Ane Karoline


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