imagem: stocksnap.com


Uma neblina desgraçada me cegou logo na esquina da minha casa quando tive a ideia ridícula de sair de casa na noite da minha sarjeta. Depois vi que era fumaça e fechei a entrada de ar externo do ar-condicionado para não me engasgar com tanta fumaça, já me bastava estar engasgado comigo mesmo; engasgado com minha covardia. Se eu dissesse que já havia tomado uma decisão quando saí de casa, estaria mentindo: saí impulsionado pela raiva, sem destino, sem rumo certo; mas vontade eu tinha. Uma vontade velha, moradora do meu peito desde o dia em que ela me chamou de “meu bem” pela primeira vez – queria que ela sumisse, sempre quis que ela desaparecesse, que eu nunca a tivesse conhecido. Fiquei pensando foi que se batesse o carro, se eu morresse ali naquela fumaça, ela nem saberia, ou saberia? Se eu morresse, ela iria no meu velório? Se ela fosse, iam dizer: vossa santidade, manipuladora e destruidora de sanidade mental, chegou; e chegou na companhia do cara com quem ela ria no shopping. É só pensar nela que a morte já vem fértil em minha mente, morte de quem, era o que eu queria saber, quem é que vai ter que morrer para que eu possa voltar a viver. E ela que vivia dizendo que eu não pensava em nada, olha aí, minha cabeça um nó.

Sei lá para onde eu ia, só ia. Pista limpa, livre, sem carro, sem gente, sem nada; a BR que leva para a casa dela estava livre, quinze minutos para chegar lá. Beirando a insanidade, afogado na sandice, entrei rasgando no Drive-thru no meio do caminho para lá. Que diabos era que eu estava fazendo é que eu não sei, sorte foi ter sido lembrado pela fome de que eu estava prestes a fazer idiotice. Débil mental, ela me explicava sentada no meu colo, é uma pessoa de mente fraca. Então era eu, me tornei débil mental, controlado por sentimentos. Ainda que fosse ódio, ainda que fosse raiva, ainda que fosse aquela sanha desmedida de quem dá cinquenta facadas em um cachorro morto, ainda era eu sendo controlado por sentimentos. O que vai querer, senhor? A voz da moça perguntava e eu, tentando parecer o são, tentando fazer a voz mais firme que eu tinha, fiz meu pedido. O que me dá raiva é que na beira da porcaria do balcão de espera tem pinturas dependuradas, para quê diabos pinturas dependuradas ao redor de um balcão de espera? Isso me dá raiva porque ela é pintora e, então, eu tenho raiva de tudo quanto é pintura porque eu não consigo sentir raiva dela. Não sei dizer se é boa pintora, ela me perguntava e eu não sabia dizer, não sou crítico de arte. O que eu pude notar, pelo que andei sondando da vida dela, é que ela melhorou muito; agora parece que pinta com mais confiança, parece que sabe o que está fazendo, parece que não precisa mais da minha aprovação. Inferno, não precisa mais da minha aprovação, como se eu quisesse analisar arte de uma artistazinha de beira de esquina; nunca nem gostei de arte. Se é boa pintora, então, eu não sei, mas sei que pintou com eficiência um quadro ruim de mim para todo mundo.


Pintora, artista, como diria ela, pode até ser útil para a sociedade. Mas e quanto a um cara que vende seguros? Sentado no carro, no meio da madrugada, com uma mão eu comia o sanduíche, com a outra procurava a maldita foto que ela postou com o cara. Achei o perfil dele e ele é vendedor de seguros. Digamos que ela seja útil, digamos que ela seja única, como ela deve achar que é, mas e quanto a um cara que vende seguros? Qualquer um pode vender seguros! Se ele some, se ele desaparecesse, outro vai lá e faz igual ou melhor que ele. Se alguma coisa se quebrasse nela também, talvez eu me consertasse; se ele morresse, talvez eu voltasse a viver. Na foto, que eu já tinha visto dezenas de vezes em dois dias (ou três, perdi as contas), ela, abraçada nele, sorria de um jeito menos tenso, de um jeito muito mais espontâneo do que quando tiramos nossa única foto juntos; mais viva, mais segura. Olhei novamente para a cara safada dele: barba torta, olheiras de quem passa noites acordado vendo pornografia na internet, as bochechas roliças amassadas pelo sorriso; ele olhava para ela como se só esperasse pelo momento de devorá-la, como se ela fosse uma cigana que tem algum tipo de sumo de vida.  Nesse rumo de pensamento, parece até que a vida é ela; quem a tem, tem vida. O foda é que eu não tive peito de ir lá me sentir vivo com ela, não tive coragem para tentar, perdi logo a paciência com o jeito nhem-nhem-nhem dela. Enquanto ela estava só, vá lá, eu sentia que ainda emanava vida para mim, ainda era minha; isso antes de ela se enlaçar com um vendedor de seguros. Foi esse vendedor de seguros aparecer para eu ficar cheio de nóia, dois dias pensando, repensando, sondando. Antes disso, eu nem queria saber, me perguntavam dela e eu fazia pouco caso; tá maluco que eu vou ficar com uma mulher adulta que ainda quer ir para a Disney? No dia que ela me veio com essa, cortei logo: se for para gastar isso tudo, que seja para a Europa, porra. Agora, Disney? O tal vendedor de seguros deve ter aceitado, imagino a cara dele concordando, engolindo os caprichozinhos dela, escutando as pseudociências dela, levando ela para ver filme infantil e comer com guardanapinho de pano no colo. Puta que pariu, o cara vende seguros, olhei o perfil dele todo e vi que a vida dele toda se resume a ser um banana, que diferença faz se um cara desses existe ou não? O imbecil, achando-se grande empreendedor, colocou o endereço no perfil. Débil mental. Ativei o localizador, limpei a boca na manga do casaco, girei a chave na ignição e comecei a odiar esse vendedor de seguros porque eu não consigo odiá-la. 


Ane Karoline

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