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Deitado de barriga para cima, mais uma vez sem sono, sem vontade de dormir, sentindo minhas costas já afundando no colchão pelo longo tempo na mesma posição, mas sem vontade de me virar para o lado. Sabia que se me virasse para o lado, os óculos iriam ficar naquela posição desconfortável e, então, eu os tiraria, fecharia os olhos na vã tentativa de dormir. Depois desistiria, abriria os olhos e ficaria olhando o teto sem vê-lo. Essa história de olhar sem ver é coisa dela também, ela deve ter me rogado uma praga, pedido para os anjos para que essas frases de efeito ficassem rondando minha cabeça – vai saber, ela era meio mística, meio tudo. Frequentemente isso se repete, quando eu estou mais cansado e com raiva; ela me vem quando eu estou fraco; é como se meu cérebro soubesse que quando forte, não preciso dela.

Percebi, mais uma vez, que não dormiria e, remotamente, pensei em ler um livro. Ler alguma coisa, que fosse. Ri de mim mesmo: eu nem gosto de ler. Ela deveria estar lá, lendo às pampas e conhecendo palavras melhores que “às pampas”. Olhei a tela do celular: 23:57. Ela deveria estar dormindo, será? Será quem tem aula cedo? Pensei ter visto em algum lugar, ou alguém me falou que sim: ela tem que acordar cedo às segundas. Devo ter visto em algum lugar, ninguém me falou não, eu não falo dela com ninguém, eu não falo dela para ninguém. Os poucos que sabem, nem me perguntam mais... Já tem o quê? Cinco, seis anos? Espero que em mais cinco, ela suma. Evapore da minha cabeça como minha paciência evaporava com ela. O único amigo que fala nela é sempre para me deixar puto de raiva, é sempre para me dizer que eu ainda gosto dela. Nunca gostei, eu respondo. E não minto, não sei mesmo se gostei, por isso não sigo o conselho do Maurício e não vou falar com ela, se eu for falar, ela vai querer certezas, vai se negar a ficar com alguém em dúvida. Que raiva que eu tenho disso. O que eu vi no shopping não parecia uma certeza, não parecia um para sempre, não parecia porcaria nenhuma; mas se for comigo, ela quer certeza, quer me atormentar com perguntas para as quais eu não tenho as repostas.

Afora a insônia e essa indignação que me gerou o fato de tê-la visto, mal nenhum ela me fez, o mal dela é amar, aliás, o tal jeito dela de amar. Ama e acha que a gente tem que amar de volta, que a gente tem que gritar isso na rua, tem que apresentar para os conhecidos. A desgraça que seria se eu levasse ela em casa... Isso ela não vê, nunca viu. Na primeira piada machista do meu pai ela ia fazer o quê? Revidar? Quando minha mãe deixasse de jantar com a gente para lavar as louças ela ia responder o quê? Um discurso? Evito esse tipo de coisa. Quando eu pensava, quando eu penso – porque eu ainda penso – em trazê-la em casa, pensava no trampo que ia ser para termos, pelo menos, um segundo de paz no meu quarto, sem ninguém para encher o saco; antes disso ia ter que atravessar meio mundo de gente e eu pisando em ovos por causa das opiniões fortes dela. Quer opinar em tudo também, inferno. Tá, eu também gosto de ter minha opinião, mas não fico gritando por aí, levantando bandeira de tudo quanto é porcaria o tempo todo. Pronto, conseguiu me estressar mesmo sem estar aqui. Só em lembrar, já me dá raiva de tudo: raiva porque eu ainda moro com meus pais, porque ela é difícil de lidar, porque eu fico calado, por tudo, raiva de tudo; agora fico me perguntando porque já passa da meia noite e continuo pensando essas porcarias. Tem gente babaca, como o Maurício , que diz que depois do que eu vi ontem estou triste. Engoli em seco? Sim. Achei esquisito e tudo, mas triste não estou, não sinto nada. Triste é quem perde parente em acidente de carro, triste é quem descobre que o padrinho morreu, triste é quem tem câncer. Eu fiquei triste quando achei que ela tivesse câncer – o que foi o primeiro motivo pelo qual eu meti o pé e saí fora pela primeira vez – porque ela reclamava de dores de cabeça, tinha espasmos. Com dezessete anos, como eu ia lidar com espasmos? Não deu. As dores de cabeça dela deveriam ser eu porque agora ela, pelo que sei, não as tem mais; ontem ela ria e não parecia ter dor de cabeça nenhuma. Não perguntei nada para ela, mas eu sondo; é melhor assim, ser sombra que presença.

Sombras somos os dois: ela, com aquele jeitinho, e eu. Ela nem me viu, eu acho, mas parece que acendeu a porra de uma dinamite no meu cérebro, uma dinamite que está para explodir; dois dias sondando, pensando, repensando. Escuto uma música, lembro; vejo um negócio aqui, outro ali, eu lembro dela. Eu nem gosto dela, tenho certeza disso. Se me chega alguém e me oferece um trocado qualquer: ela ou o dinheiro? Eu escolho o dinheiro! Por que é, então, que ela fica fazendo aparições na minha mente, surgindo quando estou distraído, em flashes que se repetem mais que a música hit do carnaval? Nem para isso ela serviu, nem para ser carnavalesca, nem para ser uma desgraçada que gosta das coisas que eu não gosto, nem para ser uma ordinária que age de um jeito que dá nojo, que assim eu tomaria logo ódio e não teria essas epifanias esporádicas. Se é que já não tenho ódio, talvez essa obsessão seja ódio por ela ter estragado tudo; aparecendo com aquele jeito de “quero te conhecer”, assistindo minhas coisas preferidas, cantando as músicas da banda que eu gosto nos tons mais agudos que eu já escutei, um tom capaz de penetrar minha mente e me atormentar.

02:23 e eu acordado ainda, se é que a cólera deixa alguém realmente acordado. É certo que alguma coisa despertou em mim nos últimos dois dias, alguma coisa que me diz para acabar logo com isso. Escuto o barulho abafado de alguém abrindo a torneira do banheiro, encaro o teto como que assombrado, mas assombrado por dentro, o fantasma dela me persegue e não me deixa seguir em frente. Ainda hoje, mesmo sei lá quantos mil dias depois, lembro de como ela fazia um beijo parecer uma coisa importante; parecer um momento especial, e isso me assombra. Essas importâncias ridículas me perturbam como se me cobrassem alguma coisa que eu sei que não devo a ninguém. Será que sei? Ela tem esses misticismos, eu não. Eu sempre planejei as coisas pensando na realidade, sem especulações fantasiosas, sem pseudociências, sem sentimentalismo irracional; e, ainda assim, fiquei atazanado quando ela não me mandou um “feliz aniversário” esse ano. É por isso que tem algo errado, o fantasma de alguém que não significa nada para mim, me atormenta; pior, o fantasma de uma pessoa viva. Viva demais. A cabeça já doendo, os olhos ardendo de cansaço, decido que tenho que me livrar dessas memórias quentes e festivas, ilusões, memórias agitadas de alguém que não deveria estar roubando minha paz. Ela vai ter que sumir, da minha mente e da minha vida, de um jeito ou de outro sobrou para mim resolver isso. Às 02:57, no ápice da raiva, peguei as chaves do carro, joguei o casaco velho da universidade no ombro direito e saí fechando a porta com cuidado para não acordar ninguém em casa.




Ane Karoline

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