imagem: pinterest


Com as duas mãos ao redor da xícara quente, já inebriada, embebida pelo aroma do chá, me lembrei. Acho eu que tudo se deu porque eu mesma já devaneava tanto que me via líquida como aquele chá, navegante perdida, afogada. Sempre mergulhando, até em pensamentos mergulho; sempre me lançando, até em relacionamentos me afundo, não posso mentir nisso; vou mentir para quê? Não é raro eu me perder em descomedimento. Um chá mesmo, veja bem, eu bebo quente, fervilhando ainda, embaçando os óculos com o vapor, que é para sentir a quentura quase me queimar a língua, aquecer a garganta e chegar rasgando no peito. O chá, para mim, é tomado assim: para ser sentido. 

Me parece - lembre-se sempre que o que me parece não condiz necessariamente com a realidade - que esse chá de hoje eu senti mais por ter esquecido de adoçá-lo, mas por outras coisas também. Sorrindo, então, com o peito inflamado pela temperatura, pelas doiduras, pelas dores e pelas suturas, usando o meu mesmo moletom velho, a lembrança veio num jato;  foi sentir o chá no peito para que eu logo me lembrasse da pergunta que há um tempo te fiz. Lá, aquele dia, eu ainda não sabia o que era mesmo tomar um chá, sabia apenas que chá pode ter significados variados e pode não ter nenhum. Dostoévski, por exemplo, achava que tomar chá era um luxo; minha vizinha já não acha; a gente achava que chá só servia para alívio de doença. A cena é ainda morna na minha cabeça, como a xícara em minhas mãos: eu, deitada, olhado para o teto escuro, te perguntei "o que é tomar um chá?". Pergunta maluca e despretensiosa para a qual não tínhamos resposta, questionamento incongruente sobre o qual fazíamos piada. Mas hoje me veio ela, a resposta. Me veio nessa xícara de chá sem açúcar: tomar um chá é tomar tento, é tomar tempo para respirar. 

A função do chá é que muda, mas o gesto não: cuidado. Se tomado sem companhia, cuidado consigo mesmo; se em companhia, cuidado com o outro. Já as incumbências é que podem ser das mais variadas; o chá gelado da semana passada, tomei para cuidar do estômago, coitado; o chá com aquele moço eu não tomei porque teria outro final; o chá que tomo em julho é para cuidar da garganta no inverno; o chá que tomo hoje é para aquecer. Com essa xícara, procuro, agora percebo, confortar os espaços vazios no meu peito, reservados a quem já se foi, espaços que ficando esburacados; os quais não posso, e nem quero, preencher, então, aqueço-os. E o chá que você, bem sei, participa sem mim, é cuidado também: é como que para me provar que a gente só toma chá com quem satisfatoriamente nos acolhe. Espero que te refugiem no calor da coletividade enquanto percebo que, para mim, tomar chá sozinha é o que convém. Continuemos, então, tomando chá, tomando tento, tomando tempo - seja lá qual for a intenção e a função dessa fusão. 

com amor
Ane Karoline

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