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Acordo de ressaca. Um raio de sol tímido entra pelo vidro meio aberto da janela e me convida a levantar. Meus olhos ardem. Um silêncio ensurdecedor. Vovó costumava dizer que, acontecendo o pior dos vendavais durante a noite, alguém sempre precisa colocar as coisas em ordem ao amanhecer. Levanto da cama em um pulo e arrumo o quarto. Passo o café e tomo banho sem pensar demais em coisa nenhuma. A cabeça dói e confiro a caixa postal duas vezes antes de ir ao trabalho. Nada além de uma voz feminina dizendo que não, não há nenhuma nova mensagem. Começo a pensar que o problema é com o telefone. Atravesso a avenida sempre tão movimentada e vejo alguns rostos desconhecidos conversando baixinho, em uma espécie de luto coletivo. Chego ao escritório e invento tarefas para que Katia, a tagarela, permaneça em minha sala. Isso, querida, continue falando. Processos, novelas e aquecimento global. Evito o silêncio, só por hoje.


— [...] sobre essa espécie de ave. Mas eu não entendi muito bem, não terminei de assistir a reportagem porque o Paulo ligou. Processos, processos, processos. Dane-se, eu quis dizer. Tanta espécie em extinção e as pessoas só pensam em papeladas. 

Meu corpo foi inteiro incendiado por uma espécie de esperança. 

— O Paulo ligou? Você disse para ele retornar quando eu chegasse?

— E precisa falar? Ele liga o dia inteiro. Você já arrumou a sala, Katia? Ele pergunta. Eu respondo que sim, senhor. E ele me arruma outra tarefa. 

A faísca foi apagada. Paulo, o meu chefe, havia ligado. Não você. Lembro, então, que você sequer tinha o número do escritório: nunca fez questão de certas intimidades. Anota, eu insistia, caso aconteça alguma emergência. Você me olhava apático e respondia que nunca haveria uma emergência. Olho para Katia sem ouvi-la, tento lembrar o momento exato em que conheci você. Não lembro. Lembro que, antes de você, cada Paulo era um Paulo. Eu ouvia o nome e perguntava de quem se tratava: Paulo, o meu chefe, Paulo, o florista ou Paulo, o homem grisalho do outro quarteirão. Percebo a imensidão egoísta por trás do ato de tomar posse de um nome   ainda que inconscientemente. Volto para casa sem prestar atenção nos rostos da avenida, agora, agitada. Confiro a caixa postal. A gravação repete a ausência de mensagens, quase com pena de mim. Me olho no espelho e me vejo. Olheiras, marcas de sol e a cicatriz do braço direito – caminhos que trilhei sozinha. É só mais um fim. Em paz, durmo.

Ane Kelly

3 Comentários

  1. Sempre bom passar por aqui e lê textos ricos em emoção e literatura. Esperando o dia em que vocês responsáveis por esse blog, reúna os melhores textos e transforme em um livro, as leituras frente a uma tela luminosa limita o tempo que posso ficar lendo.

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    1. Olá! Que bom saber que você gosta de nosso blog e, sobretudo, de nossos textos. Teremos, em breve, um projeto de livro. Obrigada por nos ler!
      Abraço!

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  2. Que belo texto. Realmente você tem um grande talento literário. Invista nisso. Parabéns !!!

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