imagem: pinterest  (protesto em memoria aos desaparecidos na ditadura do Chile)


Eu, que fui mal alfabetizada não sei mais por negligência de quem, não me calarei. Bem sei que me queriam calada aqueles que têm todos os direitos, aqueles que, não importa o que façam, são direitos. Eles queriam a nós calados, eu e toda a gente como eu. Sei bem disso, assim como sei que ninguém parece querer ouvir falar - e, muito menos, se responsabilizar - pela falta de pavimentação em minha rua. Parece cansativa e esquecida a história do filho da minha vizinha que morreu por falta de leito no hospital - hospital construído como presente aqui, para essa minha população periférica composta de vidas que valem menos. 

Aqueles que detém o que a maioria não tem, não querem ouvir falar sobre as vidas que valem menos. E nem é por sentirem pesar o bolso cheio de quem tem conta escondida em tudo quanto é país gringo, é porque o saco está cheio de ouvir a tentativa de grito dessa gente marginal que somos. Afinal, gente de verdade indo às ruas e se opondo às atrocidades atrapalha o jantar de gala e ameaça o monopólio do lugar de fala. Quem são esses que, agora, acham que podem falar? Não deveriam estar ocupados acordando às 4h da manhã, cansados demais para opinar? Imagina que loucura se a mão de obra começa a questionar, quem é que vai ser explorado?

Eu enxergo. Sinto a agonia de quem me queria quieta, de quem me queria concordando com atrocidades e servindo, unicamente, de cuidadora do lar (o que também não é tarefa fácil). E eu devo admitir que  queria dizer que não vejo os olhares tortos e que não sei o que confabulam. Queria dizer que não ouço os cochichos críticos sobre o meu atrevimento, inclusive, daqueles que nasceram da mesma terra áspera e abandonada que eu - mas que almejam ser frutos da  árvore podre de onde vêm essa gente que rouba de nós para ter campo de golfe no quintal. Queria fingir que não sei que eu seria orgulho nacional se ficasse quieta, se me abstivesse de pensar, se não soubesse discutir, argumentar, ler e nem calcular - assim eu não saberia quantos direitos me são roubados por dia. Queria não viver todos os momentos em que minha inteligência é questionada - por ser mulher e por ser pobre. Queria ser indiferente à minha parcela de culpa na corrupção e na vida das crianças fumando crack na rodoviária. De atriz, que já tentei ser, queria ser  parte desse teatro de horrores na vida real: ser capaz de dissimular e fingir que não é para o professor que ensinou meu filho a ler que estou negando o direito de descansar. Ser covarde é tão mais fácil.

Mas não. E, mesmo sendo dessa gente que nem sempre tem o privilégio de poder escolher sempre o que comer, meu estômago teve a audácia de nascer fraco para o que não presta: sou indigesta com hipocrisia, não me desce. Sei de tudo isso e muito mais, sei que me queriam muito menor que sou. O estorvo é que eu me quero muito maior que sou, na intenção de levar meu povo comigo: para cima. Nessa doidera de tentar atravessar o lago JK a nado, me afoguei uma porção de vezes, mas continuo respirando. Ainda que hoje me afogasse, tanto eu já teria dito, que não me calaria, e não me calarei.  As palavras são sempre o meu bote salva-vidas: são minhas armas. Admito, as palavras são armas pequenas, mas não deixam de ser armas e com elas estou em punho: pronta para lutar. 

Ane Karoline

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