imagem: weheartit.com


Eu sempre tive um problema danado com sangue. Sempre uma agonia, um medo misturado com nojo e pavor. Horror até ao meu próprio sangue. Era quase um pânico o que esse tal cheiro de ferro sempre me causou. Acabei aceitando meu título: a menina que tem medo de sangue. Era um título charmoso, até, tipo a menina que roubava livros - só que sem nenhuma aventura. Era exatamente isso: não existe aventura nenhuma em ter medo, sobretudo medo de sangue. Por isso, nunca aprendi a subir em árvores: imagina se eu caio? 

Eu não corria. Quando sentia a vontade de correr, adrenalina correndo nas veias, me controlava pensando: se eu cair, sangra. Era sempre assim, uma tormenta de mesmice: não brinco de pique, não jogo vôlei, não ando de bicicleta e não me arrisco com objetos cortantes. As pessoas levavam com impaciência, no começo: que frescura sem cabimento. Depois, pararam de levar, pararam de me chamar, pararam de me acompanhar, pararam de me levar para qualquer lugar. Quando eu ia, era correria, pai; mãe; tia; todo mundo evitando berreiro desnecessário e desmaio; todo mundo estancando um sangue que, nem sequer, corria. Cheguei em um ponto que não sabia mais se, realmente, tinha medo. Não arriscava para saber, nem queria ver. Sei que não poderia ser mais difícil e sem noção: eu, mulher, portadora de útero fértil, ovulante, não saber lidar com sangue. Uma hora, pensava, uma hora eu lido com isso, agora não.

Eu me transformei em uma metáfora: criei medo de me ferir, mesmo que por dentro. Ecoava  em minha cabeça esse medo, de tal forma, que sozinha comecei a caminhar: não posso arriscar, não vou, não quero, não posso arriscar, não posso me machucar, não. Pisando baixo, cautelosa, fui vivendo, aliás, vim vivendo até aqui. O aqui virou um tempo presente no qual eu não queria compor com ninguém, queria andar sozinha, por medo de me machucar. De tanto medo de arriscar, de tantas experiências perdidas, comecei a repensar e, então, cheguei no hoje. Hoje, uma noite de sexta-feira 13, com uma Lua linda que dá para ser vista da janela da minha cozinha. Já mais calma, mais corajosa, distraída olhando a Lua, me cortei fazendo um suco de laranja. O enjoo veio: a boca do estômago revirada, mas segurei e achei ridículo. Ridículo: duas décadas com medo de sangue, para me cortar em uma sexta-feira tão banal, sozinha, sem ninguém para fazer um curativo ou me dizer para respirar pela boca. E foi assim que percebi que esse corte era fruto de uma nova versão de mim que veio chegando sem que eu percebesse: uma versão de mim que não quer mais caminhar sozinha por medo de se machucar, por medo de errar.

Enjoada, mas enebriada, me obriguei a perceber que aquelas gotas de O-, que escorriam de mim, não me causaram dano algum, estavam, na verdade, me mostrando que quando a gente vive, é isso que acontece mesmo: a gente se derrama para se renovar. Quando a gente arrisca, acaba sendo, de alguma forma, afetado. Arriscar é se transformar. 

Especialmente para os colaboradores da Semana do Grito por Escrito. 
com muito amor, 
Ane Karoline



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