Aconteceu na última segunda-feira – dia internacional do recomeço, por capricho do protagonista. Era tardezinha na capital do país quando eu entrei no ônibus que me levaria para casa. Mais precisamente, cinco e quarenta e cinco da tarde. Cinco e quarenta e cinco da tarde muita coisa acontece. Na escola próxima ao terminal de ônibus, mocinhas e rapazes encerram suas aulas. No prédio também próximo dali, homens e mulheres andam apressados após um longo dia de trabalho. Do lado de fora do ônibus, um vendedor de chocolate também anuncia que o dia de trabalho está chegando ao fim: “só sobraram cinco barras de chocolate meio amargo. A promoção de fim do dia é duas por um real. Alguém?” Ninguém.
E o ônibus parado no terminal. E a fila não acabava. Meu Deus, as duas horas do trajeto prometiam passar mais rápido do que aqueles dez minutos em que o motorista esperava todas as pessoas da fila entrarem. Enquanto eu balançava a minha perna direita sem perceber, uma mocinha sentou ao meu lado. Aparentava ter uns vinte e três anos. Ela sorriu para mim como as pessoas costumam sorrir para a gente antes de sentar ao nosso lado no ônibus e eu sorri de volta. Por fim, entrou o último rapaz da fila e o ônibus seguiu. Respirei aliviada.
Enquanto eu fazia um cálculo mental de quantas horas eu teria de sono àquela noite, duas vozes atrás de mim me trouxeram de volta ao momento presente.
- Pois é, cara. O trampo foi puxado mês passado, chegou no meio do mês e eu estava em um nível de estresse que a minha fuga foi pegar o carro, colocar o dinheiro, que eu estava guardando, de gasolina e meter o pé na estrada. E assim o fiz.
- Pô Paulo, sozinho?
- Sozinho e meio sem rumo, cara. Eu só precisava me lembrar de quem eu sou, respirar ar puro, longe daquela empresa.
- Teu emprego é mó bad vibes, não é? Passei lá esses dias - semana passada, eu acho, para te dar um “Oi” e não me deixaram entrar, cara.
- Ih, irmão, deve ter sido por conta do teu jeito largado: bermudão, tatuagem, alargador... As pessoas de lá batem o olho em você e, dependendo da roupa que usa, não te deixam entrar mesmo. Isso pode afetar o status da empresa, segundo eles. O meu chefe é aquele que eu te disse pô, tem parceria com uma igreja. O que mais me instiga é isso: de cinquenta funcionários, só eu e mais dois não temos religião. Todos os outros são da mesma igreja e quase matam uns aos outros, todos os dias. A galera não se suporta mais, João. Mó climão. Eu só ainda estou lá porque preciso da grana...
- Verdade, as tatuagens!  Eu nem tinha pensado nisso... A galera julga sem dó, mesmo. Religião sem espiritualidade faz um estrago, parceiro. Cê entende quando eu falo, né?!
Olhei para trás rapidamente e quis dizer: eu entendo. Eu entendo! Mas percebi que o momento
 era tão inteiramente de Paulo e João, que não quis atrapalhar. O meu papel ali, um banco à frente deles era só escutar.
-  João, quando eu fiz essa viagem sozinho eu refleti muito sobre isso, cara. De verdade. A cabeça estava pesada, o pensamento longe. Quando percebi, tinham dois caminhões na minha frente. Sabe aquelas plaquinhas meio surradas que geralmente colocam na traseira dos caminhões? Na traseira de um estava escrito “Deus é amor” e na traseira do outro “Deus é fiel”. Isso fez sentido para mim àquele dia como nunca antes...
- Cara! É isso! Eu tive uma sensação bem louca agora. Desde moleque eu lia essas frases pelas esquinas e pensava que havia um significado bem complexo por trás delas, mas já pensou no sentido mais literal? Deus é o puro sentimento de amor.  Existem mais de dez mil religiões no mundo inteiro, a forma que damos para o divino arquiteto muda, mas a essência é a mesma: amor. E a certeza que eu tenho, irmão, é que ele é fiel. Eu já me livrei de muito perrengue nessa vida.
Eu preciso escrever um texto sobre isso, pensei. Eu preciso transformar isso em uma crônica. Olhei pela janela, deixando o diálogo de João e Paulo em segundo plano. Já estávamos na metade do trajeto. A mocinha sentada ao meu lado se remexeu.
- Moça, desculpa perguntar, mas qual é o seu nome?
Ela disse, dirigindo-se à uma mulher em pé à nossa direita. Na voz, um sotaque forte de Minas Gerais. Era gostoso de ouvir. Me vi prestando atenção em mais uma conversa.
- Maria. Por quê?
- Quando eu tinha oito anos, você foi minha catequista. Sabe, eu não sou muito boa com nomes, mas com rostos sim. Eu nunca esqueço os rostos. Nunca esqueci o seu.
E assim aproveitaram os trinta minutos finais do trajeto conversando sobre os últimos anos, sobre as coisas que mudaram e sobre o que não mudou: depois de alguns anos morando em outro estado, a mocinha voltou a frequentar a mesma capelinha onde Maria foi sua catequista. Elas enchiam os olhos para falar da grandeza de Deus. Assim como os rapazes atrás da gente. Elas eram católicas. Eles sequer seguiam alguma religião. Mas enchiam os olhos ao falar de Deus, também.
Parada solicitada.
- Bom te ver, Maria. Fica com Deus!
- Vou nessa, Paulo. Fica com Deus!
A moça e o rapaz desceram do ônibus, Maria e Paulo ficaram. Com Deus. Eles, que provavelmente nunca tinham se visto, ficaram com a companhia do mesmo Deus.


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