imagem: Revista Fórum

Acordei. Aconteceu há pouco. Até aqui, eu vinha em um estado letárgico, um sono falso e leve: sem nunca dormir o suficiente para deixar os pesadelos me assolarem, sem nunca estar acordada o suficiente para tocar a realidade. 147 dias mentindo. Cento e quarenta e sete dias contando o pior tipo de mentira possível: para mim mesma.

High hopes
Não é tão ruim.
Não é impossível de aturar. 
Não vou sucumbir.
Não vou desistir. 

Não vou me afogar. 

Não. 

Não dava mesmo para me afogar, quanta inocência. Não é possível que eu me afogue onde não tem água. O que eu não sabia é que morreria pelo fogo. O fogo que entra e sufoca as minhas entranhas: o fogo do ódio.
É a fumaça desse fogo, essa massa cinza, imunda e não concreta que me sufoca. 
É a fumaça que ocupa a atmosfera todas as vezes em que se dá um passo a mais no desmatamento da Amazônia. 
É a fumaça tóxica que invade as vísceras todas as vezes em que se desacredita da educação, que se humilha um professor, que se desconfia da liberdade.
É a fumaça de setenta tiros que arde e que queima a pele todas as vezes em que a cor da pele é fator determinante para a morte. 
É a fumaça com fagulhas cortantes, capazes de calar vozes, que queima todas as vezes em que alguém é morto sem explicações, sem investigações, sem ter o direito de ser fazer presente. 
É a fumaça venenosa que mata relações, mata bicho e mata gente todas as vezes em que mitos são canonizados acima de tudo e de todos.
É a fumaça peçonhosa que se impregna na gente como sangue nas roupas de um morto todas as vezes em que se usa a violência para justificar mais violência. 
É a fumaça maligna que cega povos inteiros todas as vezes em que uma criança larga um livro para segurar uma arma - ainda que imaginária. 

É do imaginário doente e fraco que se faz o terrorista.

Tudo queima, tudo arde, tudo é destrutível e vira uma coisa só. Pedra contra pedra, peito contra pólvora: tudo vira pó. 

Acordei há e pouco e tudo dói. Mal consigo respirar, meus olhos ardem, tem fumaça para todo lado e já consigo avistar as labaredas. Achei que conseguiria me deixar queimar sem tentar conter, sem tentar gastar o que ainda há de fluido em mim. Não dá. 

High Hopes

Caminho dentro da cortina de fumaça buscando qualquer clareza, buscando qualquer saída, buscando salvar quem estiver no caminho, buscando convencer os incendiários a abrir mão do fogo. Por enquanto nada, só o caos e o ardor da fumaça me sufocando, do fogo queimando tudo ao meu redor. Mesmo assim, caminho segurando a mão daqueles que têm as mãos livres das chamas. Mesmo assim, e talvez por isso, caminho em defesa de um algo, de um não sei o quê, de uma humanidade da qual esse fogo tem apagado até os rastros. 

Ane Karoline

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