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No reflexo no espelho, olho nos olhos do caos: fundos, amarronzados e derretidos. Olho-os tanto que me perco neles, vejo-os líquidos, como um poço sem fundo, infinito e enigmático. Não é como se reconhecesse algo aqui, pelo contrário, perco-me cada vez mais, mas sigo em hipnose, como quem não pode evitar se afundar. Olho o caos tão de perto que não sei mais se o enigma se dá pelo acumulo de coisas ou, ao contrário, pela ausência de tudo; o vazio me parece tão caótico quanto a multidão. 

Por um instante ou dois, consigo me segurar na realidade e amplio a imagem, olho ao redor dos olhos do caos: olheiras esverdeadas, uma sobrancelha mais arqueada que a outra, manchas, muitas manchas; um rosto. Rosto de quem, meu deus? Estou tão perto do caos, tão imersa numa liquidez funda, que não ouço nada, não sei de nada; o nada me esmaga, se infiltra nas minhas células, me desintegrando, não sou mais capaz de me reconhecer. É um esforço me distanciar desse estado de abstração completa, alguém me chama lá longe e eu consigo colocar um pé na realidade. 

Começo, então, a puxar e arrancar tudo o que me sorve para esse centro líquido e caótico, exponho tudo que tenho tentato esconder: uma amiga; um cachorro morto; um bebê desconhecido sorrindo; um atropelamento; a moto voando por cima do canteiro; uma traição; duas traições; pressão; uma viagem cancelada; um apertão no braço direito; o pulso envolvido por uma mão grande; um grito; dezoito gritos engolidos em uma única semana; o sangue escorrendo demais o mês inteiro; o sangramento que não cessa; duas crianças caídas no chão; o menino baleado com uniforme escolar; uma adolescente suicida; vários suicidas desconhecidos; uma criança descalça pisando em cacos de vidro correndo do pai; uma mulher gritando; um beijo sem vida dento do carro escuro; o volante do carro escorrendo das mãos; uma mãe gritando; uma mãe com as mãos queimadas de crack; dois meninos pedindo um lanche; um homem armado; três tiros toda madrugada; a escuridão da rua de baixo; o estuprador atrás da parada de ônibus; uma velhinha caindo no ônibus; dois livros molhados no chão, mofados; uma gota de suor frio na testa, a acusação ecoante: frígida. 

Todas as coisas que constituem o caos estão ligadas por um só fio e, ao puxá-lo, começo a reconhecer o rosto do caos. Vejo, então, os cílios ralos, como os de minha mãe, o nariz redondo, minha marca de catapora na bochecha direita: meu rosto. Caótico e lúcido. Como uma pintura há muito abandonada, escondida por trás de sujeira e mofo, existo. Por cima de mim, existem coisas, dentro de mim, outras tantas; coisa me destruindo, coisas me sufocando, coisas fazendo com o que eu não me reconheça. Ao tocar o fio invisível que as mantém unidas, sou esmagada pela imagem dos meus pés sangrando por dois quarteirões e sei, sem nenhuma dúvida, que vou me fazer em pedaços ao tentar emergir. 

Ainda assim, opto por retirar tudo, cada pedaço, cada memória, cada grito ouvido, cada palavra engolida: destruo tudo. Me transformo em destroços. Quando me olho no espelho e reconheço meus olhos inchados, fundos, amarronzados, mas lúcidos, descubro: é se despedaçando que a gente se refaz. 

Ane Karoline

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