Era uma vez eu, eu estive convicta de que estava evitando falar sobre como me sinto e sobre todas as atrocidades as quais vejo acontecer. Acontece que até mesmo nessa historinha inventada, eu estava errada: não estava evitando falando sobre isso, estava sendo, sutilmente, silenciada. Mesmo hoje, certa, segura de minhas crenças e minhas lutas, me vejo ainda pisando em ovos, me desculpando desnecessariamente e evitando falar sobre um assunto ou outro porque sei que a resposta vem; e a resposta é violenta, e a resposta tem uma voz mais grossa que a minha, apesar de não ter razão alguma. A resposta que eu recebo é sempre tão irracional que me fez, e ainda faz, cair na pior armadilha de todas: será que estou exagerando? Bom, vamos aos fatos, para citar uma mulher, me valho de uma frase de Ellen Oléria "todo mundo conhece essa história? Pois bem, ela é mais ou menos assim":

Me parece que eu nasci incomodada, porque não sei dizer quando começou, mas tinha sempre uma pulguinha ali que me fazia parecer brava. Quieta, mas brava - aliás, eu sempre me vi brava, os outros me viam estressada. Um menino de nome Moisés jogou minha prova de matemática embaixo do filtro de água da sala de aula e, quando eu revidei, me disseram que eu era uma criança muito estressada; afinal, ele gostava de mim, achava meu cabelo lindo, por isso, havia destruído minha prova de matemática - não passou pela cabeça de nenhum adulto sorridente que eu havia conseguido uma nota muito melhor que o Moisés. Houveram muitos Moisés em todas as etapas da minha vida, alguns mais agressivos, alguns mais manipuladores, alguns mais cínicos, alguns doutores, alguns linguistas, alguns publicitários e alguns engenheiros; todos eles me diminuindo, todos eles me colocando em dúvida, todos eles me envergonhando e me sacaneando de formas diferentes. Todos eles, por fim, me intitularam de muito, muito estressada, irritadíssima. E eu ficava ali, com oito, com dez, com doze, com quinze, com vinte anos, boquiaberta, gaguejando, tremendo por dentro, querendo explicar racionalmente todos os motivos pelos quais eu deveria mesmo estar brava; mas nunca consegui explicar, calava a boca. 

Daí, veio o adesivo de carro com a Dilma de pernas abertas que todo brasileiro deve conhecer: o rosto da presidente unido a um par de pernas bem abertas, deixando um espaço no meio, onde o bico da bomba de gasolina seria inserido. Com o adesivo, vieram os insultos de baixo calão, todos eles referentes à feminilidade ou à sexualidade da presidente; não se preocuparam em atacar seu governo com qualquer racionalidade, atacaram-na, sobretudo, como mulher. Eu ali, sentada no banco do passageiro de um carro dirigido por um homem, comecei a me sentir enjoada, enojada dentro daquele posto de gasolina; me senti violentada e, novamente, não disse nada porque, se dissesse, estaria exagerando. Afinal, qual o problema de desmoralizar (mais uma vez) uma mulher usando o corpo dela como público? O corpo feminino não é público?

Não resolveu, mesmo que meu medo de ser considerada histérica tenha me calado, eu continuei sendo vista como histérica; uma histeria emburrada. Ao invés de ser bonitinha e ordinária, virei a bonitinha, mas histérica. Fala demais. Para quê esse tom mesmo? Se for para falar alto, que seja gemendo, oras. Ou para ser líder de torcida, né? Uma boquinha tão bonita, mas fala demais. 

Não teve jeito, aconteceu foi que de passo em passo, caminhei para a histeria completa quando comecei a acompanhar o trabalho da deputada Manuela D'ávila. Tive que garimpar muito antes de conseguir chegar nela, antes disso, me deparei com um cerco de insultos sexuais ao redor dela. Novamente, pouquíssimos se dispunham a questionar as propostas e os posicionamentos políticos dela racionalmente, insultos e mais insultos. O corpo público dela se estendeu ao processo de maternidade e à Laura (filha dela): todo mundo opinou. Sobre política, nada. 

Demorou, mas consegui. Caminhei de volta para a racionalidade, juntei dois mais dois, quando a situação ilustrativa foi o Michel Temer. O preço da gasolina nas alturas e o máximo que se ouve sobre ele é: corrupto. Nada de adesivos, nada de piada, quando tem insulto, é direcionado à mãe dele. Não vejo, de forma alguma, insultos e zombarias com bons olhos; mas foi só então que percebi como a imagem de um homem, ainda que corrupto, é imaculada. O corpo dele é sacro, do qual ninguém fala, no qual ninguém toca,  sobre o qual ninguém opina. Só política dele é criticada, ele é visto como um profissional - como as mulheres também deveriam ser. 

Aí, eu vi: meus argumentos sempre foram plausíveis, mas não adianta apresentar respostas racionais para pessoas que não me consideram um ser racional, no máximo, inteligente, mas muito emotiva - se for no vigésimo oitavo dia do mês então, né? A ficha foi caindo pedacinho por pedacinho: por mais que eu tenha dez anos no estudo de uma língua, insistem em ouvir a voz do vizinho que conhece inglês só a partir de video-games; por mais que eu passe noites (de bom grado, por sinal) lendo, relendo, procurando acervos, fazendo pesquisas e cursos sobre política, rebatem todas as minhas colocações e aplaudem ao primo que repete discurso de facebook. Mas, agora, isso não me deixa mais com medo; não me deixa mais histérica; me mostra, ao contrário, que devo me colocar mais, falar mais, gritar mais alto, rasgar todos os adesivos de mulheres com pernas abertas. Se tenho que me colocar com mais força, se tenho que estudar duas, três, quatro vezes mais que um homem qualquer para poder ser ouvida, o farei. E, a partir de agora, o próximo que me perguntar " mas você está estressada?" vai saber que o que não me faltam são motivos para estar estressada e que, com maestria, posso enumerá-los, fazer um gráfico deles, escrever um artigo em três línguas diferentes ou, para os mais limitados, desenhar. Quem sabe assim fica mais claro?


Ane Karoline

Deixe um comentário

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.