ilustração em aquarela feita por Agnes Cecile .


A primeira coisa sobre a qual devo advertir você habita entre o estranhamento e o deleite. O fato é que você não me verá hesitar em perguntar logo de cara qual é o seu livro favorito, caso não tenha um, tudo bem; pergunto sobre sua música, banda, seu cantor ou filme favorito. Por horas e horas a fio, me coloco diante de você com a intenção de te desvendar, descobrir tudo que quiser me mostrar, te observar por inteiro; eu também me coloco por inteiro para te acompanhar. Ouço com gosto enquanto te incentivo a falar sobre suas quedas, seus sonhos, seu primeiro ano de escola e o último de faculdade. Quero saber das suas experiências malucas em hospitais, das doenças que teve, de como lidou com a queda dos seus dentes de leite e o relato da primeira vez em que dirigiu; quero conhecer as diversas versões de você que já existiram - as que você se orgulha, as que acha graça e as quais você escolheria esquecer, se pudesse.  Não quero meramente olhar o que você é hoje sem saber o que você já foi para chegar aqui, quero conhecer você através do caminho que você trilhou. 

Logo em seguida, quase junto com o processo de te descobrir, começo a abrir um espaço para você em minha memória afetiva. Vou guardando os detalhes das cores favoritas, do carinho pelos cds originais do Renato Russo, da história sobre apendicite e do picolé de milho verde. Com cuidado e carinho, é um júbilo para mim ter os seus medos, preferências e traumas guardados na minha mente, assim, consigo ter a sensibilidade de não te machucar com assuntos delicados para você; não quero atrapalhar a cicatrização das feridas que a vida te causou antes que eu pudesse te conhecer. Quando dou por mim, percebo que seus detalhes vão harmonicamente se tornando parte de quem eu sou também;  naturalmente, expando minha capacidade de amar e de armazenar informações. Através de você, descubro coisas novas, coisas outras, coisas que eu nem sabia que existiam em mim e, por pura sincronicidade e reciprocidade, acabo te levando a conhecer novidades também; te mostro quem eu sou. 

Devagarinho, caminhamos até o momento de minha abertura: me revelo para você. Ao cruzarmos essa linha, te entrego logo um aviso de cautela; recuar daqui é perigoso. Vou querer te contar tudo que você quiser saber, vou te falar sobre quem eu fui, onde pisei e o que deixei de ser; vou te mostrar minhas cicatrizes, minhas escaras, minhas dores, tudo que já fiz e tudo que ainda quero fazer. Involuntariamente, demonstro minhas fraquezas e te falo sobre o que eu tenho tentado esquecer. Sem nenhum lamento, te mostro as citações que mais mexem comigo, as músicas impopulares que ouço, meus caderninhos de anotações, os Cafés escondidos que frequento e as palavras em idiomas diferentes que venho aprendendo. Devagar e cada vez mais longe, vamos trilhando um caminho compartilhado, cheio de detalhezinhos nossos - algumas vezes até antagônicos - entre espaçamentos necessários e distanciamentos obrigatórios para que possamos alçar voo. 

Voar,  esse é o passo que percebo a ligação já como irrevogável. Quando, depois de te descobrir, de me desnudar e de nos misturarmos, preciso de um tempo para me refazer; preciso  de um hiato de nós. Aí, e só aí, percebo que há amor: quando o espaço que eu preciso ter, apesar de toda a vontade de proximidade, é respeitado - e, por consequência, no seu espaço pessoal também não entro. A última coisa sobre a qual devo advertir você é que, ao chegarmos aqui, entre o deleite e o estranhamento, eu te amarei o suficiente para não hesitar mais em desaparecer um pouco, tomar um chá de sumiço para encontrar novidades, para devorar um livro em um dia; é que meu livro favorito tende a mudar frequentemente e eu vou querer falar de todos para você porque, provavelmente, amo você. 


Com amor, 
Ane Karoline

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