imagem: pinterest


Ontem era meio de semana, meio de mais uma semana que fica no meio de um mês que fica dentro de um ano desses que são computados na vida da gente. Mas, sim, ontem era meio de semana e aparentava sábado, uma dessas aparências que cegam: a gente tem que ficar se lembrando que uma coisa não é outra coisa, que é para não ser enganado. O fato é que ontem aparentava sábado porque, em primeiro lugar, fui ter com Luiza uma daquelas tardes tranquilas que quem tem o privilégio de ter amigos pode ter; em segundo lugar, me pareceu mais sábado porque era dia de faxina na casa de Luiza e, nem sei desde quando, tenho em meu imaginário que sábado é dia de faxina, me acostumei com essa ideia. A gente se acostuma com cada besteira.

Logo que avistei Luiza vi que vinha toda diferente me receber: o cabelo estava solto, como quem, finalmente, tivesse entendido a beleza que existe nos cachos. Além disso, pasmei ao vê-la usando o vestido que vestira em seu noivado - há oito anos atrás. Estranhei porque aquele vestido lhe era caríssimo por ser uma lembrança importante do noivado com o outro lá e, agora, ela o estava vestindo para limpar a casa? A gente se arruma como pode, daí já vi que Luiza estava era se arrumando.

Eu tinha ranço do tal vestido, mas ontem gostei dele: parecia que deixava Luiza florida. No meio da arrumação, ela era toda sorrisos e nostalgia. Eu a ajudando a separar as coisas que queria guardar e as que jogaria fora ou doaria e, ao mesmo tempo, me divertindo com as lembranças que cada objeto trazia, cada caso que ela me contava ou os que eu mesma me lembrava, de longa data que era nossa amizade. O tempo todo os estranhamentos daquela situação me consumiam, não pelo desapego -que é coisa boa - mas por ser Luiza a desapegada. Contando aqui, para você que não conhece a Luiza, não parece importante, né? Mas é. Veja bem, Luiza é o tipo de gente que guarda o ingresso todas as vezes que vai ao cinema, e cola numa agendinha. Ela guarda papeis de bala que ganhou de pessoas especiais, guarda todas as fotos, cartas e bilhetes, guarda um monte de coisas que ninguém liga, se importa com tudo. Tudo amontoado, café cheirando e a gente conversando conversas desimportantes, que a gente só conversa com gente que é importante para a gente. Tanta coisa que, no meio de tudo, Luiza acabou foi derramando um pouco de café no tal vestido de noivado, uma florzinha que era rosa ficou toda amarronzada - o vestido veranil de Luiza, virou outono. Me alarmei por lembrar de toda a frescura dela com aquele vestido, mas ela fez que nem ligou: faz mal não, esse vestido não se estende em meu armário mais não, chegou ao fim.  Um vestido novo daqueles, pensei. Fiquei remoendo esse negócio mesquinha de vestido até que larguei esse pensamento e, por querer concluir alguma coisa, concluí que Luiza havia mudado. A gente muda, oras. Toda a gente muda; muda até de casa, não vai mudar de gosto? 

Tudo empacotado para doar ou jogar fora, eu já achando que Luiza tinha virado uma alma superior que se desapega de bens materiais, até que ela me aparece com um palito de pirulito todo imundo e todo amassado. Veio, com os olhos marejados, dizendo que era criancinha e morava na terrinha e o avô havia comprado o pirulito, que ela tanto queria, com umas moedas da passagem - ele havia voltado para casa andando aquele dia. Não questionei nada mas, certamente, meu rosto gritava a confusão que se plantava em minha mente ao vê-la guardar quinquilharias e jogar outras coisas fora. Ela logo viu, sorriu e me disse: não fique besta não, tudo depende do valor que a gente dá. Se uma coisa já nos perdeu o valor, para que ficar insistindo em encaixá-la em nossa vida?

Concordei e entendi: é por isso que a gente se sente tão deslocado em algumas relações, a gente perde o valor para as pessoas mas elas ficam nos segurando ali, sem cuidar. A diferença aqui, entre gente e o vestido de Luiza, é que os objetos não podem escolher entre ir e ficar, não podem decidir a hora de partir. A gente pode. 

Ane Karoline

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