Parece que se passaram anos desde aquele dia. A saudade que sinto hoje não se compara com a dor que ele sentiu naquela época.
Era uma tarde de verão e, sabe quando se é criança e se tem “o” melhor amigo? Então, ele era meu melhor amigo. Suas canelas magricelas, compridas e seus cabelos ruivos desgrenhados montavam a imagem perfeita de uma criança esquisita. Mas tinha que ser estranho mesmo, pois se não o fosse, não teríamos nos conhecido.

Naquela tarde eu estava, como sempre, no canto do “trepa-trepa”, o brinquedo mais alto do parquinho. Não lembro como fui parar ali, mas a areia fina que forra o chão era tão branca, quente e confortável que não me importei em parar para pensar nesses assuntos. Posso dizer, sem muita precisão, que muitas crianças passavam por aqueles brinquedos e todas elas me ignoravam. Passavam por mim como se eu não existisse.
Eu o observei de longe. Era um garotinho de trejeitos não muito comuns, meio desengonçado, um pouco atrapalhado, de hábitos por muito esquisitos. O que me chamou a atenção foram suas tentativas frustradas de se aproximar das outras crianças no parque. Assim que ele se aproximava, elas saiam correndo. Muitas vezes elas o gozavam, por outras realmente se assustavam. Na última tentativa de meu futuro amigo em conseguir se enturmar, ele se aproximou de uma garotinha no canto da bancada de areia. Esta estava sozinha e concentrada em construir seu pequeno castelinho, sem muito sucesso, pois toda vez que tentava pôr a concha de enfeite na torre mais alta que conseguia fazer, essa vinha ao chão. Meu futuro amigo bolou um plano. Ele a iria ajudar e, com toda coragem que um pequeno ser humano poderia ter, encheu seus pulmões e se aproximou em passos. A garota, concentrada, olhava para a areia e a primeira coisa que viu de meu futuro amigo foram seus pés. Ao olhar para cima, viu os cabelos vermelho fogo desgrenhados e balançando com o vento. Ela se assustou e gritou. Assustou e saiu correndo, pisoteando o castelinho, em disparada para a mãe. Foi um golpe fatal no pequeno coração do garotinho que, por fim, desistiu e se pôs a brincar sozinho nos cantos mais afastados do restante das crianças.
Naquele dia ele passou toda a tarde observando as brincadeiras dos outros, as quais não podia participar. Ele os observava e eu o observava. No mesmo instante senti uma grande afeição pelo garoto. Estávamos no mesmo barco. Elas o ignoravam tanto quanto me ignoravam. Eu quis me aproximar dele, mas antes que eu o chamasse a atenção ele deu as costas para o parque e pegou o rumo da rua.
Me alegrei. Pela primeira vez eu tive uma centelha de esperança de que finalmente conseguiria ter um amigo e que – talvez - ele pudesse ser o meu melhor amigo. Pela primeira vez, em tempos, eu me dediquei a pensar, a imaginar, a vislumbrar um incrível futuro. Mas o mais incrível é que as areias, aos meus pés, estavam com uma sensação mais aconchegante do que de costume.
Esperei ansioso pelos dias que se viriam.
Na tarde do dia seguinte lá estava ele. Como esperado. Meu futuro amigo chegou mais esfarrapado do que da última vez e como das outras vezes espantou todo mundo. No final da tarde eu finalmente tive minha oportunidade. Ele se isolou no canto do parque mais uma vez, mas para minha felicidade estava mais próximo de mim. Eu não queria que ele me visse - eu tinha vergonha - então me escondi do outro lado do “trepa-trepa” assim a viga ficaria bem entre nós dois.
Cochichei. Tentei chamar sua atenção.
Ele olhou para cima, depois para os lados e finalmente olhou em minha direção. Tentou me ver, mas eu me escondi ainda mais. Por fim ele desistiu e perguntou quem eu era. Se ele fosse uma criança comum, como tantas daquelas que estavam ali, não teria me dado atenção e teria ido embora. Mas não. O garoto ficou e naquela tarde conversamos de todos os assuntos que outrora estavam presos em nossos corações. Falamos das outras crianças, depois de como era solitário não ter ninguém para brincar e por fim ele me aceitou como seu amigo. Depois de uma conversa demorada e prazerosa, ele anunciou que precisava ir para casa se não levaria bronca e insistiu em me ver. Eu recuei mais uma vez. Não achava que era hora. O disse que tínhamos bastante tempo e que amanhã eu estaria no mesmo local o esperando. Assim logo ele desistiu de sua vontade e, com um largo sorriso, se despediu de mim.
Os dias que se passaram foram os melhores. Ele já não tentava mais se entrosar com ninguém e vinha correndo sentar perto de onde eu estava. No começo fizemos um acordo de que eu só me mostraria a ele quando achasse que era a hora certa e ele concordou sem muita insistência apenas pelo fato de agora ter um amigo. E, com esses termos, vez que vinha se sentava na areia do parquinho ao lado da viga que nos separava. Depois de tantas conversas, a magoa, raiva e tristezas já não faziam mais parte de nossos assuntos e pudemos ser crianças normais. Conversávamos sobre doces, dormir, escola e carros. Ele adorava carros e me confessou que quando crescesse ele iria ser piloto assim como o pai dele tinha sido um dia. Eu fiquei encantado com os sonhos de meu amigo. E do fundo de meu coração, se realmente nós temos sentimentos vindos de lá, eu senti vontade de ajudar ele a realizá-los. Meu pequeno amigo era encantador.
Então aquilo aconteceu.
Como todas as tardes ele apareceu e veio direto a mim, mas depois de nossas bobas conversas notei algo diferente ao longe. Era uma linda menina de cabelos lisos escorridos, olhos grandes amendoados e bochechas rosadas. Ela olhava, com aqueles redondos olhos, diretamente para nós dois. Depois de um tempo fixou em meu amigo.  Ela o encarou e quando ele olhou a nossa volta também a viu. Como imã os dois não desgrudaram o olhar. Ela rosou ainda mais; Ele escondeu suas feições por debaixo do cabelo comprido. Eu? Senti algo que nunca havia sentido.
No dia que se seguia ela vinha se aproximando. Primeiro timidamente, com seu pequeno garfo de plástico para riscar a areia, depois com uma grande lancheira cheia de doces. Logo ficaram amigos e aquela menininha o tirou de mim. Meu amigo já não se interessava pelas nossas tolas conversas, já não me dava tanta atenção. Seus olhos e coração estavam voltados totalmente para aquela miúda figura franzina. Eu o estava perdendo.
Certa tarde, quando o sol estava em seu ápice, eu já não suportava o sentimento de abandono. Aquela menininha e meu amigo estavam lá, porem distantes. Brincavam de correr pela areia, de subir no imenso foguete e de devorar guloseimas. Passaram de brinquedo em brinquedo, correndo, pulando, caindo e sorrindo. De mãos dadas, vieram em minha direção. Mas não era a mim que procuravam, estavam vindo para o meu “trepa-trepa”. A garota espoleta subiu de maneira ágil até o topo do brinquedo.  Meu amigo, de pernas frágeis e tremulas, custou para chegar à metade da estrutura. Lá do alto ela o incentivou e ele se sentiu acalentado pela coragem. Subiu um, dois, três lances quando esticou a mão para pegar na dela. Quando seus dedos se roçaram eu o empurrei.
Como eu havia dito, não sou muito bom de recordações, mas aquela cena eu nunca esqueci. Primeiro veio o baque seguido do estalo dos ossos se partindo. Em seguida o vermelho vivo que logo foi absolvido pela areia. Pela primeira vez eu olhei para meu amigo e o achei belo. Na queda ele havia batido de cabeça no chão e eu pude escutar seu último suspiro.
Como eu o empurrei? Dizem que o desejo é uma das forças mais poderosas do mundo. Eu apenas o desejei, com tanto afinco, só para mim.  
E a garota? Vocês devem estar pensando.
O pânico tomou conta da menina que paralisou lá no alto do brinquedo. Demorou alguns minutos até que ela pudesse sair em disparada a procura de ajuda e mais muitos outros minutos para que alguém socorresse meu pobre amigo que já não se movia. Não faz diferença para mim. Agora ele era meu, apenas meu melhor amigo.
Tempos a fio se passaram e a mecha de cabelo ruivo que hoje carrego em minhas mãos já não são tão vivas como já foram um dia. No começo eu e meu melhor amigo conversávamos bastante sobre as mesmas tolices de outrora, porem com o tempo nossas conversas se tornaram monólogos e um pouco depois ele parou de me responder. Acredito que agora já não somos tão amigos como antes, mas o que posso fazer? Como dizem: não são todas as amizades que duram para sempre.
Agora ainda estou aqui, na areia branca e quente e que já não me aconchega mais. Solitário outra vez, olhando o passar do tempo. Entretanto as lembranças do passado me assombram. A saudade pode ser mais cruel que a solidão.
O que eu sou? Não tenho forma. Posso ser o que a pessoa deseja. De um coelho de pelúcia a um pequeno pássaro vermelho. Quem decide será sempre você.


 -Nina Machado

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