A rotina do dia pesava sobre as costas muito bem vestidas. Aquele terno era parte de uma realidade na qual há muito não se encontrava. Reminiscências de outra época: Aquela que fora realmente feliz. Sua vida perfeita havia sido destruída por uma única jogada errada. Tudo se perdeu. Se foi seu prestígio no escritório, seu renome, seu dinheiro, sua mulher e filhos... Tudo que um dia foi bom acabou sendo levado pra longe. Seu destino era como a criança sádica do parquinho, dando-lhe tudo que sempre quis somente pra poder tirar-lhe no final.  Essa última, sua esposa, doeu mais. Doeu muito. A ponto de fazer com que pensasse em se matar tantas e tantas vezes e, ainda assim, ser covarde o suficiente pra continuar vivendo. Como poderia culpá-la? Aquele homem que já teve tudo era o mesmo que agora tinha de pegar o metrô para ir trabalhar, sob o risco de não ter o que jantar no fim da noite. Sequer se considerava um homem, era só fração daquilo.
Naquele dia em especial, teve a infeliz ideia de andar para espairecer. Afinal, em uma vida desgraçada, tudo parece sufocar. Precisava de ar. Ar que fizesse circular o sangue, ar que o fizesse pensar melhor, ar que fizesse a ansiedade da vida em declínio ir embora. Ironicamente, naquele dia choveu. Em meio a um mês de fins de tardes quentes e céu limpo, naquele dia o céu decidiu desabar sobre sua cabeça, como todo o resto do mundo. Inutilmente, tentou utilizar o jornal velho que carregava consigo para cobrir-se dos respingos. Que ingenuidade a sua! Aquela chuva estava longe de ser só garoa e na medida que engrossava, fazia seu andar se apressar, findando em uma corrida desesperada por abrigo.
“Onze horas da noite.” Pensou consigo mesmo. “Onde vou achar um lugar aberto?!” E porque talvez o destino estivesse cansado de brincar com sua cabeça, um barzinho velho despontou no final da rua escura. Era sujo, estranho, mas o único lugar que tinha suas luzes acesas, ainda que as portas estivessem fechadas. Não pensou duas vezes ao correr até lá, empurrando a porta que parecia emperrada. “Não tem ninguém!” Chutou uma poça com raiva, desistindo de tentar se cobrir com o jornal ensopado.

Como um anjo, uma jovem saiu detrás do balcão, abrindo-lhe um sorriso apressado e se adiantando para abrir a porta. Não pensou em nada, só entrou. Ao menos ali estava seguro da tempestade que estaria por vir, ainda que não fizesse ideia do porque seus pelos da nuca se arrepiaram.
— Graças a Deus! Achei que não tinha ninguém aqui...
A garota sorriu com simplicidade, mas de uma forma que julgou no mínimo encantadora.  
— Tudo bem. Já estávamos fechados, mas não iria te deixar na chuva.
Algo no tom da voz dela o fez acalmar. Talvez fosse o fato de que pela primeira vez em semanas, alguém havia lhe tratado com gentileza. Bateu as mãos nas roupas, tentando se livrar do excesso de água. Ela havia sido gentil, ele também seria com ela.
— Acho que eu poderia beber algo, pra compensar o incômodo de ter de me abrigar aqui.
— Não é incomodo algum..
Ela sorriu, caminhando na direção do balcão e se posicionando atrás dele, voltando a secar uns copos que estavam ao alcance da mão. Aquilo mais parecia uma desculpa, pois nenhum deles parecia sequer molhado. Será que estava com medo dele? Talvez tivesse se arrependido de tê-lo deixado entrar. Sentou-se em um dos bancos, escorando-se na bancada. Ficaria bem ali, onde pudesse vê-lo. Sem saber o porquê, achou que deveria ser também gentil.
— Pode me servir um copo de uísque?
De pronto se apressou em entregar-lhe um copo bem servido de White Horse, que ele agradeceu com um sorriso ameno. Bebericou de qualquer jeito, relaxando o corpo cansado e frio sobre o balcão.
—Dia difícil?
— Nem me fale... O pior de todos. – suspirou. — Acho que preferia estar morto.
— Preferia?
Ela riu de uma forma engraçada, a reação completamente oposta a que ele achou que seu comentário iria causar.
— Não sei.. Talvez eu já esteja. – deu de ombros – O que poderia ser pior que isso?
— Huummm – ela pensou, estreitando o olhar. — Talvez o inferno.
O inferno. Sempre foi um cara que acreditou que o inferno era a própria Terra. Os acontecimentos dos últimos meses só confirmaram suas crenças. A lançou um olhar desdenhoso.
— Acho que o inferno é superestimado no final das contas.
A risada que recebeu em troca do gracejo foi gostosa, boa de se escutar. Aquela garota não era bonita e vestia roupas que haviam saído de moda há pelo menos dez anos atrás, mas algo nela era atraente. Talvez fosse porque ela era de fato um sopro de vida em meio a tantos dias mortos. Por isso conversaram. Conversaram por uma hora que passou em menos de dez minutos. Estava tão descontraído que nem se deu conta que lá fora, a chuva já havia passado. Sentiu um pesar comprimir o peito. Aquela era a única pessoa com quem tinha realmente tinha tido uma conversa decente, fora do automático e acabou percebendo que aquilo fazia falta. Queria conhecer mais sobre aquela garota, muito mais.
— A chuva parou.. – disse ele.
— É, parou.. – respondeu.
Um segundo quase constrangedor de silêncio se instalou entre eles, até que ele finalmente deixou vir à tona seus pensamentos.  Culpe o quarto copo de uísque, mas sentia que havia uma conexão palpável entre eles.
— Escuta, não quero parecer pretensioso..  Mas possivelmente eu não vou voltar aqui depois que sair por aquela porta... - pigarreou um tanto desconcertado - Então, pensei que talvez pudesse pegar o seu número.
As bochechas da jovem coraram. Pegou um pedaço de papel e uma caneta, se colocando a escrever, enquanto ele avaliava os traços daquele rosto um pouco pálido pela falta de sol. Tomou o último gole da sua bebida e se colocou de pé, pronto para sair. A moça empurrou pequeno pedaço de papel em sua direção, recolhendo as mãos acanhadamente. Talvez não fosse tão comum assim que acasos a levassem a um potencial encontro, então tentou dar a ela o crédito da surpresa. Sorriu, encorajando-a enquanto guardava o papel no bolso. Queria dizer alguma coisa, mas um barulho ecoou pelo bar vazio, chamando sua atenção para os fundos.

O semblante da garota mudou no mesmo instante, ficando nervosa e agitada. Fechou os olhos, como se algo de muito perturbador estivesse prestes a acontecer. Estava ávida e sobressaltada, genuinamente com medo. Mas porque?
— Se não se importar, eu tenho que ir agora. – Apressou-se, saindo de trás do balcão. — Acho que meu pai voltou.
O homem se frustrou com a ideia da outra o deixar sozinho e até tentou impedir, mas ela já havia desaparecido em direção aos fundos do bar. “Eu te ligo.” Pensou intrigado com a súbita mudança no comportamento da jovem. Será que seria muito estranho, caso decidisse segui-la? Guiado pelo instinto, caminhou na direção onde a outra havia sumido segundos atrás e para sua surpresa, o que saiu de lá foi um homem grande, careca e com uma espingarda muito bem carregada nas mãos.
— O que diabos pensa que está fazendo, invadindo o meu bar?!
Ergueu as mãos por instinto de preservação, arregalando os olhos para o careca grandalhão à sua frente.
— Invadindo? Não! Estava chovendo lá fora então a menina me deixou entrar! – foi tudo o que conseguiu dizer em sua defesa, logo recuando dois passos largos.
— Que menina?! Você está louco? Eu estou sozinho! – o homem retrucou com azedume. — Estava nos fundos arrumando as coisas e ouvi ruídos aqui. Como ousa invadir o meu bar?! – apontou a espingarda para o rosto do homem, já branco de medo. — Vou te matar por isso.
— Por favor! Ela estava bem ali, atrás do balcão. Foi ela quem me deixou entrar! – a exasperação não o deixava formular sentenças coerentes, tudo o que realmente queria era salvar sua pele. — Nós ficamos conversando enquanto eu bebia uísque! Eu não estou mentindo! Ela.. ela.. – o suor descia gelado pela testa. — Ela era morena, mais ou menos um metro e sessenta. Sardas no rosto e olhos cor de mel! Eu não estou inventando. Ela deve estar por ai em algum lugar!
A expressão do homem mudou por completo, mas ele não soube identificar se era tristeza ou ofensa. Abaixou a arma só o suficiente para se encararem.

— Você está dizendo havia uma garota aqui? – passou a mão por detrás do balcão, puxando um porta retratos. — Essa garota?!
O homem estreitou os olhos, vendo a imagem perfeita da garota que o acolhera, abraçada ao brutamontes arrogante. Era ela! A mesmíssima pessoa com quem passou uma hora extremamente prazerosa, minutos antes. Conservava o mesmo sorriso tímido, o mesmo olhar meio insano.. Parecia até que estava olhando pra ele. O outro homem, por sua vez, parecia muito mais novo e não ostentava nem de longe aquela carranca amarrada ou mesmo a barriga protuberante.
— Sim! Foi ela mesma! É sua filha?
Um tiro. No chão, mas passou perto demais.. O grandalhão fincou o porta-retratos no balcão com força.
— Como se atreve a falar que minha filhinha esteve aqui?! – engatilhou a arma novamente caminhando com raiva em sua direção.  — Minha filha morreu há dez anos atrás!
E mais um tiro, só que esse realmente pegou. Dor. O tiro pegou de raspão, mas doía como se etivesse cravada em seu braço. A morte estava tão próxima que podia sentir seu cheiro. Saiu em disparada, correndo o mais rápido que pode, sem saber que seu braço sangrava. Pulou cadeiras, jogou mesas para trás, tudo no intuito de desviar a atenção do homem e tentar salvar sua vida.

O coração batia tão forte que por um segundo achou que fosse sair pela boca. Puxou a porta e saiu, batendo-a logo em seguida. E correu. O máximo que pode. Sem olhar pra trás. Até suas pernas vacilarem. Quando não conseguiu mais, sentou-se no chão, resfolegando. Não havia sinal do grandalhão e tampouco sabia exatamente estava ou quanto tempo havia corrido. O que diabos estava acontecendo? Aquele homem falava coisas, mas não fazia sentido algum. O pânico se apoderou dele. Será que a garota estava bem? A expressão de pavor no rosto dela não lhe saía da cabeça e agora conseguia entender o motivo: Seu pai era louco!

Precisava falar com ela, saber se estava bem ou se, no ápice da loucura, seu pai não havia lhe feito mal. Apertou a palma das mãos contra os olhos e as luz do poste piscou três vezes, fazendo um calafrio percorrer o corpo. A sensação era de que estava em um pesadelo e não conseguia de fato sair dele. O que fazer? Deveria ligar para a polícia?

Ligar.
“O telefone!”
Enfiou a mão nos bolsos, sacando o celular e o pedaço de papel que havia ganhado da garota. Se ela atendesse, saberia que aquilo era loucura! Desejou que ela estivesse bem, com toda a sua alma. Suas mãos tremiam, geladas pelo susto e pelo clima, mas ainda assim conseguiu - na terceira tentativa - desbloquear o telefone. Desdobrou o papel com cuidado.“Por favor, que não tenha me dado seu número errado..” Esticou-o sobre a perna dobrada, se esforçando para ler em meio a pouca claridade. Para a sua surpresa, não havia números ali. Era uma mensagem simples e de fácil compreensão.
“Você implorou para estar morto. Eu vou voltar pra te buscar.”

Raíssa Barreto

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