Hunger by Cristina Otero Photography © FB / deviantART / Website
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Entrei correndo esbaforida na sala: menos de um mês para entregar os resultados da pesquisa e eu ainda não havia conseguido as respostas da médica. Pelo meu estado abrupto, inevitavelmente, senti os olhares de todos na sala de espera se virarem para mim. Com o rosto ainda enrubescido pelo sol quente lá fora, me identifiquei na recepção, evitei os olhares de todos ali e me sentei na cadeira mais próxima da porta. Quando meu coração estava quase calmo, se recuperando dos cinco minutos de corrida até o consultório, ela falou comigo.

- Moça, licença. – Apontando para a alça da bolsa sobre a qual eu, distraidamente, me sentara.

Foi então que eu a vi. Era exatamente como eu me lembrava, não fosse por alguns detalhes: as maçãs do rosto haviam murchado, os cabelos longos ondulados e castanhos estavam puxados sobre o ombro esquerdo de um jeito bagunçado e a pele clara, com algumas sardas claras sobre o nariz, estava extremamente arroxeada ao redor dos olhos. Detalhes que a diferenciavam bastante da versão sensual e ameaçadora dela que eu havia conhecido mais de dois anos antes.

- Moça?  - Ela me chamou novamente em um tom que deixou muito claro o fato de que ela não fazia ideia de quem eu era ou, pelo menos, não se lembrava.

- Desculpe! Eu não vi sua bolsa aí. Você é a próxima? – Puxei assunto.
- Não. Acho que vou ter sorte se a doutora me atender hoje.

- Você também está atrasada? Eu fiz de tudo para chegar no horário, mas não consegui. – Sorri. Ela não sorriu de volta

- Não, eu não tenho horário marcado, vim parar aqui porque não sabia para onde mais ir.

Olhei instintivamente para a mão dela à procura da aliança que um dia fora minha, não encontrei. As unhas, que antes me eram motivo de grande admiração, agora estavam roídas e sujas. Com os meus formulários de pesquisa dentro da pasta, fiquei extremamente tentada a perguntar a ela o que havia acontecido, aliás, como havia acontecido. Eu não havia sido a primeira e ela não era a última. Os fatos eu conseguia imaginar sozinha, passados e repassados em minha mente, só queria saber os detalhes: quantas vezes haviam ido ao cinema para pernoitarem juntos pela primeira vez, quantas vezes ele ligou para ela na hora do almoço até parar de ligar, quando foi que ele começou a ignorá-la por dias seguidos, quando foi que ele começou a reclamar de cada escolha que ela fazia, como foi que ele a diminuiu e humilhou, quando foi que ele, finalmente, usou a desculpa de que não havia nada de excepcional entre eles. Eu queria saber quem foi que, inconscientemente, entrou no lugar dela como ela entrou no meu; queria entender como foi que ele fez com ela exatamente o que fez comigo. 

Sentada ali, com as pernas cruzadas e a cabeça recostada na cadeira, ela não parecia ser tão voluptuosa quanto ele me dizia que ela era, parecia outra coisa, outra pessoa. Vestindo um casaco de lã azul anil todo desfiado, ela se parecia com a minha versão de dois anos antes: vulnerável, confusa, despedaçada, desiludida. 

Fiquei tentada, sim, a usar meus formulários como uma desculpa para descobrir tudo o que eu queria e me sentir, falsamente, vitoriosa. Mas quando a doutora me chamou para ajudar com os formulários, eu olhei para a minha direita e a vi, ainda, com os olhos abertos fixos no teto e a ficha me caiu. Percebi que o que eu queria ali era afirmar, mais uma vez, que eu não havia caído naquela armadilha sozinha, não havia me sujeitado aquele relacionamento com aquele sujeito por culpa minha, queria me certificar de que, como eu, outras pessoas inteligentes eram passíveis de serem enganadas e atraídas para a sarjeta. Não era culpa dela e nem minha e não haveria vitória nenhuma em saber os detalhes da desgraça dela, em saber quais novos apelidos carinhosos ele havia inventado para ela e como eles haviam substituídos por agressões. A batalha que eu havia travado e vencido, não era contra ela.

Ao sair do consultório, procurei por ela e a vi de pé, perto da janela, olhando a rua. Me aproximei e disse:

- Eu falei com a doutora, ela vai te atender mesmo sem horário marcado, Daniela.  – Ela me olhou confusa, cerrando os olhos e tombando a cabeça de lado, tentando me reconhecer e eu continuei – Quando foi comigo, meu cabelo caiu pela metade e eu emagreci bastante. Você vai superar, a gente não escolheu por isso, não é culpa nossa.

- Você... Ah, meu deus. – Ela gaguejou ao me reconhecer como a ex.
Ane Karoline





Obs: Caso você sofra qualquer tipo de relacionamento abusivo, procure ajuda. 
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