Não sei se todo mundo é assim, mas eu percebo o jeitão de um cara aproveitador. Eu mesmo não suporto esse tipo, podem me acusar de tudo, de ser o desgraçado que for, mas aproveitador não. Acontece que esses caras não me enganam e o tal vendedor de seguros era um desses, afinal, ele é um vendedor de seguros. Confesso que, talvez por orgulho, eu não contava com o fato de ele ser esperto, ser um bom vendedor de seguros. Quando encontrei com eles dois no shopping, eu só conseguia construir uma imagem ruim dele na minha mente, como se, por estar com ela, ele fosse um imbecil; mas não. O cara é esperto e me tratou no maior papo aproveitador: ofereceu seguros, planos, mundos e fundos. A coisa toda ficou enrolada porque ele disse que o escritório estava em reforma isso e aquilo e, por fim, não estava atendendo no escritório, só por telefone. Lembrei dela falando que tudo se quebra e se transforma para se reconstruir, se reformar; se isso fosse verdade, eu deveria estar caminhando para a reforma, pois essa confusão toda, essa história de não querê-la mas não esquecê-la, ia acabar me quebrando em mil malditos pedaços. Quem sabe, quebrado, morto, despedaçado, eu não virasse um daqueles mosaicos, uma das obras de arte dela, quem é que sabe de alguma coisa?
Demorou
dois dias de uma insistência dos infernos para conseguir marcar com o vendedor
de seguros da cara rosa. Acabamos marcando em um bar de chopp dentro do mesmo shopping
que eu tinha visto as mãos dele na cintura dela. Fui cedo, mas ele já estava
lá; adiantado. Tá aí, ela deveria gostar disso nele também, com aquele jeitinho
dela de quem gosta de chegar não sei quantas horas antes. Além de esperto, ele
também foi bem mais firme do que eu esperava; cheguei, e ele foi logo me
recebendo de pé e com aperto de mãos. Era ele mesmo, bem ali, com aquela cara
rosa e as mesmas olheiras da foto; tive que me lembrar várias vezes de que não
havia razão para ser hostil com ele. Não ainda. O cara é esperto, mas é chato,
me dispersei várias vezes e, já puto com ele, resolvi perguntar logo sobre os
seguros para casais. Qual você me recomenda, joguei, qual é o que você usa com
sua namorada? Olhei bem fundo para a cara roliça dele, como quem não quer nada,
ele vacilou, fez cara de abobalhado. Ele gosta dela, filho da puta. Está
dormindo com ela. Comecei a ficar nervoso. Vou pedir um chopp, você quer? Ele disse que
tinha um compromisso depois e que ia dirigir. Mas e esse teu seguro aí, não
cobre isso não? Ele sorriu e disse que o seguro cobria tudo, nos melhores
hospitais do quinto dos infernos, disse que, inclusive, a namorada dele estava
viajando para São Paulo, ou Recife, não prestei atenção. A namorada dele estava
viajando com cobertura do seguro e, por isso, ele estava tranquilo. Tomei uma
golada de chopp quente, desceu rasgando. Mas que coisa, eu falei, que coisa;
achei que sua namorada morasse aqui. Percebi-o todo desconfortável. Claro,
porra, claro. Escondendo uma namorada e bancando o romântico com a manteiga
derretida pintora. A cara de aproveitador dele não me enganou nem por foto, só
mesmo ela para acreditar em um cara desses. Minha vontade foi dizer: e aquela com quem você estava agarrado aqui no shopping? Ela é o que para você? Minha vontade
foi jogar na cara dele os cinco anos de história que eu tinha com ela, dizer
que se eu ligasse, se eu a convidasse para qualquer cineminha barato, ela iria.
Minha vontade foi perguntar se ele estava com ela na noite anterior, se foi por
isso que ela não retornou. Ao invés disso, aceitei comprar o seguro individual.
Mais uma golada de chopp quente, odiei aquele chopp porque eu não consigo
odiá-la.
Insisti
em assinar o contrato no mesmo dia, sabe-se lá por que razão. Eu só queria
manter contato com ele até que eu pudesse saber de tudo. Ele até brincou,
querendo ser engraçado, dizendo que eu não morreria em um dia. Quem é que sabe?
Insisti. O contrato, ele falou, pode até ser assinado hoje, mas vamos ter que
dar uma passadinha na casa da minha prima; ela está indo embora do país, hoje é
despedida dela, acabei deixando minha pasta lá. Menos de quinze minutos depois,
eu estava seguindo o golzinho dois mil e quinze dele em direção à casa.
Quando
cheguei, não vi mais nada. Não sei quem abriu a porta, não sei como entramos,
não vi mais ninguém; só o vendedor de seguros indo até ela, parabenizando pela
viagem e pegando a pasta na mesinha onde ela descansava os pés. Ela estava nua,
a alma nua. Um vestido que eu nunca a tinha visto usar, o cabelo meio preso na
frente, o rosto bem exposto, os ombros também nus. Sorria como se nada nesse
mundo a incomodasse, como se eu não tivesse ligado para ela noites antes, como
se ela nunca tivesse conversado comigo até tarde, como se nunca tivesse chorado
por mim, como se nunca tivesse pintado quadros para mim. Sorria como se eu não
existisse mais no quadro da vida dela.
Com
a casa cheia, aposto que até agora ela nem me viu; se viu, fez que não, e fez
bem. Nem a barba eu fiz. Não fiz nada, não tive coragem para me levantar de
onde o vendedor de seguros, primo dela, me ofereceu lugar para sentar. Continuo
olhando para o copo de plástico com cerveja quente, ouvindo barulhos, risadas,
ela cantarolando, eu morto. Parece que o tal seguro não me protegeu desse tipo
de morte sem sangue que foi morrer dentro dela.
Ane Karoline