Coronavírus: Governo pede que Congresso reconheça estado de ...


O barulho do despertador, bem mais tarde do que o habitual, não me desperta: nada mais dorme em mim. Ao passo de que nada, tão pouco, acorda. Percebo, silente, que meu ritmo de leitura diminui. Encaro o teto mudo, como eu, letárgico. Lembro da matéria da BNCC, lida em tempos de preocupações mais suaves, afirmadora de que especialistas alertavam para a importância do sono. A frase me ronda: os especialistas me alertam, é por isso que não consigo dormir? A palavra dos especialistas me deixa em alerta. 

Conto treze vezes as dezessete trincas no teto, inábil. 

Os especialistas alertam: as pessoas não confiam mais nos alertas. Os alertas já são gritos, berros,  fotografias, vidas, sangue e morte; as pessoas chutam, xingam, difamam, humilham e menosprezam os alertas. Não é comigo. Não vi. Não sei. É mentira. A verdade mata. Na verdade, isso mata. A mentira não morre. Na mentira, ninguém morre. 

Conto quatro fios de cabelo no travesseiro, fora de mim, inertes.  

O alho que cura, a negação que cega, o João Pedro, o Miguel, 40 mil corpos e a Regina que não quer carregar  um cemitério. A vida tem que ser leve, afinal. Uma secretaria não pode ser um calvário. Leveza é saber que todos os dias morre gente, todos os dias nasce gente. Todos os dias tem gente que não é vista como gente. Todos os dias tem uma criança negra que sobe e que cai e que morre. A vida não pode doer, disse a Regina. Em latim: rainha. O que a rainha Regina não sabe é que a vida  não dói  mesmo, a vida não dói em quem não carrega a produção da vida nas costas. Quem tem tempo para viver, Regina? A plebe vive ou constrói a vida da realeza?  A cultura, me diga,  de que importância se faz para quem não tem o que comer? E para quem já tem cultura, para quem já é a cultura, que importância tem o de comer? 

Conto três miúdas rugas abaixo de cada olho, no espelho, sou quase irreconhecível. Só resta a alma, será?

A alma do povo negro escravizado continuou acorrentada, disse a moça branca do vídeo - ela mesma, com a alma acorrentada à desumanidade. Imagine, moça, o quanto doeram as suas mendazes correntes na menina Ághata. O quanto as vidas perdidas realmente te atormentam? A mim atormentam tanto que deixo o celular miliciano passar, assisto à terra plana girar, ignoro os hemisférios trocarem de lugar, acompanho o ministério inteiro se despedaçar, embasbacada, a me despedaçar. Parada por fora, em chamas por dentro. Não sei mais caminhar: imóvel, impotente, ignara, impaciente. 

Conto as seis gotinhas que pingam da torneira fechada. Faz silêncio aqui dentro, e lá fora, quem chora agora?

As crianças chamando, a fila na agência bancária, o moço dizendo que o verdureiro está passando, o comércio aberto: você vai morrer de fome? Você vai deixar a economia parar? O país que não anda, agora, não pode parar. O país que não te ajuda a andar, anda, guiado por meia dúzia de parasitas, por cima de você. É só você que não sai do lugar. É só você, que produzindo tudo, nada pode arrecadar. 

Conto duas colheres de café na água borbulhante. Ligo a tevê, o comercial do banco alerta: quem em casa ficar, não vai caminhar. 
Não caminho;
Não sei mais se para não morrer, ou se para deixar de matar. 

com mais dor que amor, 
Ane Karoline


   

Um Comentário

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