Eram 200 textos, agora, 201. A caixa de rascunhos me faz a contabilidade e meu coração me faz a lamentação. Minha cabeça não conta,  só tem servido para pesar uma tonelada e meia. Vivo engasgada demais, emocionada demais, cheia, lotada, embargada. Fecho todas as abas, rasgo todas as crônicas, desmancho todos os contos e me lembro de Clarice anunciando o  direito ao grito, mas não consigo gritar. Essa mão imensa e invisível, a que agora tapa a minha boca, está prestes a me enforcar. 
Lembro-me, então, da escola: não consigo, não consigo, não consigo. E eu queria tanto conseguir, mas não consigo. Os olhos cheios de lágrimas quentes, ardentes. Lembro-me do olhar dela seguido pelas palavras: pega no lápis, é só pegar no lápis. Alguma coisa você vai conseguir dizer - o que disser, seja o que for, é o que precisa ser dito.

Agora, abro o texto de número duzentos e um, mais uma vez, não porque eu tenha algo a dizer. Abro-o simplesmente porque me lembrei da frase nas costas da camiseta amarrotada da minha professora da quinta série. A camiseta que não me disse coisa alguma aquele dia, mas hoje, em flash, me diz: 
caminhante, o caminho se faz ao caminhar. 

Que caminho é esse meu, não sei. Sei apenas que de todos os lugares do mundo, a maior parte dos meus quilômetros andados foi dentro da escola: estudei, estudei, estudei e, ainda hoje, aprendo - agora, aprendo ao ensinar. Eu, de memória tão boa, não me lembro de um ano se passando sem que eu tenha caminhado sobre o chão desfigurado de uma escola. Desfigurado não por não ter forma, mas por ter muitas. Uma escola tem muitas formas. Se entrevistassem agora meus pés, estou certa de que confirmariam o que acima afirmo e, ainda, diriam que só assim sabem caminhar: dentro do ambiente onde se faz o aprender e o ensinar.

Que mudez é essa que a mim acometeu, não sei; mas sinto. Sinto que se, por um instante, fecho os olhos, me vêm: 
os sons constantes, 
a mistura de cheiros, 
a mistura de cores, 
as emoções à flor da pele, 
a correria, 
o cansaço, 
o contato, 
o tato:
 A escola me é sagrada. 

Mais uma vez, me vem à mente a Virgem na parede colocada. Não, a escola não é imaculada, ao contrário, mas, ainda assim, a vejo sagrada. Vejo todos os erros, todas as sujeirinhas nas carteiras, todos os gritos, todas as lágrimas, todas as brigas, tudo. E é justamente por isso que a escola me é sagrada: se floresce em meio ao caos, se floresce junto aos outros, se floresce por conta dos outros. É onde se planta e se colhe. Colhe-se aos demais, colhe-se a si, acolhe-se. 

A professora olhava para mim com ternura e força, como quem dizia: vai, pega no lápis. Naquele dia, passei  doze minutos inteiros me olhando no espelho quebrado acima da pia do banheiro. Foi me olhando nos espelhos dos banheiros das escolas que vi refletido o meu reflexo preferido de mim: o reflexo de quem pega no lápis e escreve uma redação vencedora.  É nos espelhos dos banheiros da escola, a qual agora chamo de minha, que vejo o reflexo de quem tenho lutado para ser: a pura imperfeição de alguém que acredita, todas as falhas de alguém que tenta, alguém que nunca para de tentar. Foi olhando esses reflexos que me fiz, foi me fazendo que entendi: a escola é lugar de construção. 

Construimo-nos na escola e construímos a escola. É essa certeza que, agora, me emudece: a escola é epicentro de contaminação. Recolho-me com dor e tento. Como haverei de me construir agora? 

De tonta que sou, não sabia, mas a escola fechada também é capaz de falar. Ainda que silente, ela agora me diz que quem a faz são as pessoas. Com seu caráter sacro, me mostra: as relações semânticas são muito complexas, o significado de escola vai muito além de portas, prédios, paredes e janelas. A escola nos faz, mas somos nós, também, a fazê-la. E, se é de moléculas, fluidos, bactérias e vírus que somos feitos, é também disso que haveremos de a escola fazer. 

Cansei. Pensar nisso me cansa. Não quero ser eu a desagradável que tudo tem que dizer. 
Afinal, com minha cabeça pesando uma tonelada, não tenho como. Não consigo. 

Resolvo contar os livros na prateleira, então, lembro da professora dizer: quando o amor bate na aorta. Eu me questionei, me diverti, me ri inteira, achando que ela falasse de horta. A desgraça é que agora sei exatamente onde fica a aorta, o meu amor pela escola está batendo lá, talvez seja hora de abrir. 

Os afetos, os abraços, sorrisos, aconchegos, lágrimas e carinhos não podem mais existir. Nada, nada, nada. Nem os apertos de mão, nem as equipes, nem as corridas, nem as cabecinhas nos ombros. A base escolar, agora, pode nos ser fatal: O compartilhar. 

Ainda não sei e, muito provavelmente, jamais haverei de saber o porquê, porque ela me olhou e soube, porque ela me disse para caminhar. Mas sei de todos os meus quilômetros andados, e eles não me ensinaram a compreender como alguém é capaz de assistir, sem dor e sem lamento, um par seu ser silenciosamente assassinado; não me deram entendimento de como um plano de genocídio pode ser tão brutalmente traçado; não me deram a percepção de que o núcleo social mais delicado e potente poderia ser usado para destruição.

Se uma vida, sequer, pode ser perdida, não é tempo para chegada, é, ainda, tempo de recolhida. 

                                                                                                                                    com cuidado temor, 
                                                                                                                                       Ane Karoline

Um Comentário

  1. Ai, Ana, a escola é sagrada demais e me dói muito ver as pessoas falando dela com desprezo, como se ela fosse o pior dos mundos. Dói mais ainda me ver pessoas que deveriam cuidar da escola, fazendo tudo menos isso.
    Seu texto é tão lindo, que me comoveu aqui.

    Um beijo,
    Fernanda Rodrigues | contato@algumasobservacoes.com
    Algumas Observações
    Projeto Escrita Criativa

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