Imagem: Ane Karoline

Se eu fechar os olhos e me concentrar bastante, consigo ver o meu eu de um ano atrás: obviamente, muito mais imaturo e menos saudável que o meu eu atual, mas o mais interessante - que é o que nos cabe aqui - é lembrar com fiquei estarrecida ao terminar o ano tendo lido apenas vinte e cinco livros em 2018. Bom, se existir uma dimensão atemporal na qual todos os nossos eus se encontrem, espero que meu eu de 2018 não fique ainda mais estarrecido: esse ano li apenas quinze livros. Em 2019, li dez livros a menos que em 2018, mas tudo bem. 

Tudo está bem porque vivi um avalanche. Contive incêndios, chorei petróleo e evitei desabamentos. Aprendi e ensinei tanto, ao ponto de passar noites sem dormir e cochilar no meio de uma reunião de trabalho. Dois mil e dezenove foi meu ano da emancipação, foi meu ano nesse território novo que é a vida adulta, foi meu ano de engolir o choro para acalentar quem estava chorando, foi meu ano de lagarta - a parte primordial da metamorfose. Ainda assim, e talvez exatamente por isso, descobri que a literatura vive em mim, ou melhor, que não existo sendo quem sou sem a literatura. Eu não deixei de ler. Li ao menos uma página por dia - ainda que o cansaço me fizesse dormir logo em seguida. Além disso, e o que considero mais importante, falei sobre literatura todos os dias - o que me rendeu ótimas conversas. Saber que a literatura está presente em cada célula minha me torna mais eu. 

Assim, posso dizer que, apesar de poucos, li excelentes livros esse ano. Há alguns anos eu não lia livros com tamanho potencial transformador. Sou muito grata a todos esses autores, e suas respectivas palavras, por terem me encontrado. 

Vale lembrar que nem todos os livros aqui listados foram lançados em 2019, mas eu os li em 2019. 

Imagem: Ane Karoline
Sem hesitar, o melhor livro que li em 2019. Eu o conheci, primeiramente, em uma aula de literatura no ano de 2017 através de um breve comentário da professora. O subtítulo do livro jamais me saiu da cabeça: "Diário de uma favelada". Pois bem, em 2019 encontrei o livro na escola onde leciono e pude, finalmente, lê-lo. O devorei em dois dias e fiquei outros tantos pensativa. Tenho lido autores incríveis, tenho lido a tal alta literatura, tenho lido cânones e jamais li as vísceras de alguém expostas em páginas de papel. Está tudo lá, todas elas, as vísceras de Carolina impressas em todas aquelas páginas - que originalmente foram escritas com muito suor e sangue. A destreza com que escreve a autora me intrigou, em primeiro lugar, acerca do conceito de talento (o qual sempre questionei e sempre julguei estar ligado à técnica, mas que técnica teria Carolina?) e, em segundo lugar, sobre o sangue de tantos brasileiros derramado, em vão, no chão do Brasil. O livro dói, sobretudo para mim - que também venho da favela. O livro é grande e engradece também. Se eu tiver que indicar a leitura universal de um livro aos brasileiros, o livro é esse. Desculpe, Machado. 

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Clarice Lispector prestigiando Carolina Maria de Jesus


Comecei a ler Virginia Woolf em 2018 e caminho, desde então, sabendo que tem uma mulher a mais segurando em minha mão. Ganhei esse livro de aniversário e foi um baita presente acetado, se eu não tivesse lido o "Quarto de despejo" esse teria sido o melhor livro do ano. Woolf faz uma análise comparativa histórica sobre atuação das mulheres na sociedade, sobretudo, no que tange aos impedimentos para uma atuação tal qual desejada pelas próprias mulheres. De sua forma analítica, a autora discute como vários acontecimentos históricos poderiam ter acontecido de forma mais acertada - ou menos trágica - se as mulheres tivessem podido atuar mais ativamente, como desejavam. É um livro curto, direto e perspicaz, vale cada linha da leitura. Indico, inclusive, para quem quer conhecer mais acerca de equidade e feminismo

Sim, mais uma mulher de escrita incrível. Sim, mais um livro que me deixou estupefata. Para não me estender aqui, vou utilizar a resenha que fiz ontem (professora em paz com seu recesso)  para  deixar claro o quão maravilhoso é esse livro. Leia a resenha AQUI. 

Imagem: Ane Karoline

Novamente um livro escrito por autora mulher - as mulheres que me leem saberão a importância dessa enfase que aqui dou. Pois bem, esse foi um dos primeiros livros que li esse ano - se não me engano, foi o segundo. Na época em que o li (gosto de contextualizar), estava me recuperando de uma intoxicação medicamentosa terrível e estava me sentindo extremamente injustiçada. Abri o livro e a autora começa a narrar entrevistas feitas com adultos que foram crianças sobreviventes da segunda guerra mundial, dois tapas, um de cada lado da minha face: desisti imediatamente da minha sensação de ter sido injustiçada. Se espremêssemos esse livro, escorreriam lágrimas que são dolorosas em si mesmas - unidas às minhas. Ainda que já soubesse, me vi chocada com a crueldade ocorrida durante a guerra, por isso, acabei também fazendo uma resenha sobre os livros de guerra (sobre as duas grandes guerras) que li - na qual discorro com mais cuidado sobre esse livro. Leia a resenha AQUI.  

Os três próximos livros, incluindo este, ampliaram minha visão acerca de negritude e racismo. Esse foi o primeiro livro de Baldwin que li e que também me dilacerou e derreteu na mesma proporção. A escrita de Baldwin é fluída, é cuidadosa, é dotada de uma técnica despretensiosa e extremamente refinada. A angústia de Tish (a protagonista) ao longo de todo o romance em busca de libertar seu amado Fonny da prisão - a qual ela julga ser injusta. É doloroso e, ao mesmo tempo, surpreendente notar as cenas descritas pelo autor se formando e ilustrando o racismo terrivelmente institucionalizado - dificultando cada passo das personagens. O que me move ainda mais é perceber que o livro foi publicado em 1974 e que parece tão atual. Leitura obrigatória. A indiferença cega.

Imagem: Ane Karoline


Esse foi o segundo livro que li de Balwin e devo confessar: o meu exemplar está caindo aos pedaços. O fato é que são 530 páginas intensas e vivas demais, levei o livro para absolutamente todos os lugares que fui. Enquanto meus alunos realizavam uma tarefa, eu li; enquanto esperava no banco, eu li; enquanto esperava no hospital, eu li; enquanto estava no engarrafamento, quis largar o volante para ler. Mais uma vez, Baldwin me cativou e me ensinou muito. 

Antes que eu tivesse ouvido falar desse livro, uma pessoa me contatou no instagram perguntando se eu tinha o livro para emprestar. Eu não tinha, mas tive que ter. Tê-lo lido antes de ler Baldwin me fez entender um pouco do que eu precisava para ler as entrelinhas de Baldwin, me preparou. Eu gostaria de recomendar esse livro, sobretudo, aqueles que jamais viveram em guetos/favelas/periferias, aqueles que não sabem como é que se faz para sobreviver ao ódio, a pão e água. Logo no começo da narrativa, há um diálogo bem explicativo sobre o que estou tentando dizer: "The hate you give little infants fucks everybody" ("O ódio que você passa para as crianças acaba com todo mundo"). Quem só recebe ódio, não sabe dar amor. Quem só recebe ódio, não pode ser cobrado por amor. Esse é um livro sobre medo, sobre autoconhecimento, sobre racismo, e, sobretudo, sobre a falta de amor. 

Por último, mas não menos importante está a única HQ que li em 2019. É também sobre a segunda guerra - sobretudo, sobre o holocausto - e é, certamente, uma das narrativas melhor estruturadas que já vi em HQs. Não me estenderei porque já fiz resenha sobre essa belezinha. Leia a resenha AQUI

com muito amor - e desejando um esplêndido 2020, 
Ane Karoline

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