Segurando uma taça c drink quase transparente, numa posição q deixe minha boca aparecer por trás do liquido
Imagem: pinterest

Me recuso a abrir os olhos quando sinto o cérebro despertar. Não está na hora, dorme, vai. Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos... Oitenta e sete carneirinhos depois, o despertador toca. Só me faltava essa: me acostumar a acordar antes das cinco horas da manhã... Lembro do vô deitadinho, os olhos arregalados, me dizendo que a gente acostuma a acordar sem despertador quando envelhece. 

Enquanto encaro os olhos no espelho, acho que envelheci: são olhos de qualquer outra pessoa, vermelho sangue, olhos que não têm resposta alguma, só carregam perguntas. Olho a escrivaninha parada, empoeirada, morta, me encarando já sem esperança de que eu a toque para escrever qualquer coisa. Nem discordo do tom fúnebre que se instala durante esse ritual matinal diário, não tem como defender alguém que acorda todos os dias e não tem resposta alguma. Acordo todos os dias sem ter resposta alguma, me levanto na esperança única de encontrar. 

Todas essas pessoas de pé em ônibus lotados por mais de quatro horas diárias precisam de respostas, por que estão fazendo tanto esforço enquanto outras não fazem nada? Eu precisava muito dessa resposta. Eu precisava muito saber porque uma multidão de gente honesta precisa acampar em frente a um supermercado para tentar um emprego ruim, enquanto uns poucos têm o poder de escolher quem bem quiserem para um emprego bom. Não ter esses porquês me envelhece um pouco todos os dias, não ter esses porquês é que me faz acordar antes do despertador. 

Em minha mão, o café esfriando me mostra meu rosto confuso refletido. Alguém, vem fiar conversa reclamando por não poder viajar para o litoral pelo empetroleamento das praias... Me ouve e me diz que não foi isso que meu avô quis dizer. Esse alguém me diz, ainda, que envelhecer é positivo, que envelhecer é crescer. Tenho certeza que não é assim, mas não tenho reposta e me calo. Eu nunca tenho as respostas, só as perguntas. Sei, com força e com fé, que o vô sabia muito bem disso: a gente envelhece, mas nem sempre cresce. Se a gente envelhece e, ao saber que tem óleo no mar, só consegue pensar na viagem de ano novo, a gente não cresceu nada, a gente não tem resposta alguma. 

O nó no estômago é quase palpável: eu quero saber os porquês.

Caminho um pouco, penso na história da garota com câncer, na história da dona Lúcia que foi queimada quando criança, na história do índio queimado, na história das crianças torturadas, na história da menina que, morta, deu nome ao parque, na história do meu pai vindo do nordeste... Olhando para o chão, penso na minha história e me pergunto para onde ela vai, aonde está sendo escrita, para quê está sendo traçada. Um zilhão de perguntas, nenhuma resposta. 

Então é isso, vô. Eu tô acordando antes do amanhecer, mas não sei pelo quê. Acho que o meu envelhecer é assim, é caminhar sem saber, jornadear procurando os porquês. 

Ane Karoline

2 Comentários

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