imagem: Google
Pode ser ficção. Ou não. Eu posso ter inventado a figura de uma pessoa sábia que, enquanto eu chorava aos soluços, tenha me segurado pelos ombros e me dito para seguir sempre em frente, afinal, eu invento várias coisas. Mas, ao mesmo tempo, pode ser a mais pura verdade, como o dia em que minha mãe disse que tudo ia passar, e passou. O fato é que eu não sei, não lembro quando comecei a basear minha vida no ato de seguir em frente, se tivesse que adivinhar diria que foi bem cedo, já que eu entendi o lema de forma errada e o tomei como literal demais, como fazem as criancinhas pequenas

Digo que pode ser ficção, mas também pode ser memória falsa, como o dia em que eu rodei, rodei, rodei no balancinho colorido e dei com a testa no chão. Meu cabelo era ralo, mas batia na cintura e eu entrei caladinha, pálida e com a coluna ereta igual à Wandinha Addams, fingindo não ver o fio de sangue escorrer pela testa até ouvir mamãe dizer que deveria estar doendo tanto que eu fiquei abobada. Não sei se foi verdade, mas sei que foi justamente para evitar o abobamento que, depois, quando partiram meu coração pela primeira vez, eu chorei dezesseis lágrimas contadinhas, ou dezessete, talvez, mas não mais que isso, logo segui em frente. Esse foi meu jeito de dar o próximo passo: a dor era tão feia, doía tão fundo, que condensei em dezesseis lágrimas e o resto eu amassei bem amassadinho e escondi no fundo da gaveta da alma. Quando me perguntaram, ainda no dia seguinte, eu sorri e desconversei. Mamãe errou ao achar que eu estava abobada de tanta dor, ao contrário, a letargia sempre foi meu jeito de evitá-la, de fingir que não existia

Daí, para o fingimento total, foi um piscar de olhos. Recebi de peito aberto os maiores furacões que a vida me lançou, levantei, ainda que esfrangalhada, depois de cada rasteira que tomei. Uma atrás da outra. Sem ar. Sem parar para respirar. Insisti em me manter de de pé, ainda que sangrando, depois de cada uma das facadas recebidas nas costas. Caminhei sangrando todas e cada uma das manhãs, mas não sabia eu que sangramento que não estanca, mata. Me mantive de pé, mas sem alma

Acredite: pode ser tudo ficção! Eu invento até amores, imagine se não vou inventar dores. E já que existe essa possibilidade, ninguém vai saber se minto, vou aproveitar para dizer: eclodiu. Imagine só! A coisa formada por todos os bloquinhos condensados de dor, os quais escondi por todos esses anos, ela tomou vida, tomou minha vida. Ela se alojou na minha garganta e não saía por nada, eu não conseguia falar e nem engolir. Usei os antibióticos para seguir em frente. A coisa se fortaleceu caladinha e me atacou no espelho: acordei com outra cara, com uma cara que denunciava a minha falta de vida, o meu sufocamento, a minha asfixia causada por tanto fingimento.

De tanto fingir que não doía, parei de sentir. Achei que o quer que fosse, eu poderia passar por cima, poderia acordar renovada no outro dia, poderia esconder de todos, poderia desmarcar todos os cafés,  poderia recusar todos os convites, poderia me esconder no trabalho e na ciência. Achei que tinha entendido Clarice que dizia que deve-se viver apesar de, mas não. O que fiz até agora foi seguir em frente apesar de, mas sem vida. Era para lutar pela vida apesar de todos os pesos e pesares, não para passar por cima dela com todos eles. Clarice tentou me ensinar a semear minha vida todos os dias e eu, interpretando como ficção, a vim esmagando ao caminhar. Sorte que a vida é forte e se sustenta: se a gente pensa em esmagá-la, ela é quem, antes, golpeia a gente. 

Sendo a minha história ou a sua, sendo ficção ou não, a tal voz sábia que me disse para seguir sempre em frente esqueceu de me dizer para me levar junto. Só se caminha de verdade quando se está inteiro, se um pedacinho de nós quebrou, é hora de parar para remendar. 

Ane Karoline


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