Umas pessoas gargalhavam. Outras mexiam em seus celulares pedindo que alguém as buscasse de volta para casa. Ainda outras já haviam desistido de se manterem sóbrias e estavam jogadas pelas paredes do salão. Fim de festa. Música baixinha tocando ao fundo. Tutz tutz tatz. Tutz tutz tatz. Tutz tutz tatz. A melodia repetitiva já não chamava mais a atenção de ninguém. Só uma coisa fazia menos alarde que a música. Sim, coisa, pois apesar de se tratar de um ser humano, se comportava como um objeto inanimado. Ela era uma garota de dezesseis anos. Alta, magra e assustada. Saiu de casa sorrateiramente na noite anterior e, utilizando a sua identidade falsificada, adentrou sem maiores problemas na festa sobre a qual ouviu tantas coisas incríveis.

O nome dela... Bem, não interessa. O que a constituía era bem mais interessante do que o punhado de letras amarrilhadas que ela recebeu de seus progenitores após o nascimento. Ela era uma peça de quebra-cabeça que veio sobrando na caixa. Não havia espaço para encaixar as suas arestas e, para uma jovem tão implume nesse mundo comi-trágico, a solução estaria em algum lugar inexplorado, com pessoas desconhecidas e situações ainda não vividas. Triste notar que a ilusão dissipou-se rapidamente. O local novo, com indivíduos diferentes e experiências inéditas não proporcionou nenhuma epifania que ressignificasse o seu mundo. Era o mesmo de sempre, de novo e de novo e de novo. Vidas vazias balançando ao som de um barulho oco enquanto copos cheios tremiam em suas mãos. Ela observava tudo em seu canto e permaneceu assim durante toda a noite. Agora que a aglomeração começava a diminuir, notou os casais praticando o desabraço e largando as mãos e as costas de suas companhias, pois dizem que se apegar é vício e se envolver é fraqueza. Assim os homens limparam o batom que grudou em suas peles e as mulheres se esforçaram para retirar o perfume que sempre teima em impregnar no pescoço. Provavelmente eles voltariam para as suas vidas cheias de likes e compartilhamentos, já se preparando para repetir o mesmo processo na semana que vem. O DJ desmontava os seus equipamentos e guardava o fone de ouvido que pendia inerte em sua nuca, enquanto os seguranças continuavam se esforçando para manter a cara de poucos amigos, mas o sono já demonstrava fortes sinais de vitória. Só quem se manteve impassível desde que chegou foi a menina.

Ela decidiu que essa fora a sua última tentativa. A nossa garota já havia tentado diversas vezes e o resultado era sempre igual: não havia local no mundo em que ela se sentisse parte, a sensação de despertença era onipresente. A conclusão foi que as pessoas viviam em uma outra sintonia. Ela era AM e o mundo FM. Algo inusitado deveria ser feito para resolver tal choque de emissões. Já que a luz começava a despontar no horizonte, resolveu ir ao trabalho do pai, que na noite anterior aceitou sem desconfianças a desculpa de que ela estava indo dormir na casa de uma amiga, mesmo sabendo que não havia nenhuma. Pegou o elevador até o último andar, onde ficava a sala de seu responsável legal, mas passou direto. Subiu a escada que dava acesso à cobertura e olhou para o céu. O sol já coloria o espaço celeste em tons de laranja. Sempre achou engraçado uma cor com nome de fruta. Aos poucos a noite ia cedendo espaço à claridade e a estrela assumia o trono do cosmos. A menina achou que já era tempo de sua determinados, chegou à beira do edifício e olhou para baixo. Vertigem. Parecia que a resposta para tudo estava lá embaixo. A gravidade a chamava e sussurrava em seu ouvido. Cantava uma canção doce que versava sobre descanso e placidez. O fim das tentativas vãs de ser aquilo em que ela não via sentido ou propósito. Respirou fundo. Olhou para o céu mais uma vez e sentiu pequenas lágrimas despontarem. Ouviu um grito. Não olhou para trás. Não queria saber de quem e nem de onde ele saíra. Fechou os olhos e puxou todo o ar que poderia caber em seu peito.
  


Jessé Lima

Crime e Castigo, página 67

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