imagem: pinterest

Minha barragem interna foi rompida mais uma vez. Dessa vez, não sei se pelo excesso ou pela falta - acho que barragem ressecada também rompe. Eu vinha ignorando as rachaduras há um tempo, para ser sincera. Fato é que chorei um rio inteiro da pior forma possível, que é exatamente quando tem alguém olhando, tentando infrutiferamente te acalmar. As lágrimas escorriam como que por um tempo infinito, sem que eu conseguisse, ou sequer tentasse, contê-las. Para ser mais exata, foram duas horas contadas em meu relógio biológico quebrado. Depois, junto com o oco dentro da minha cabeça confusa, estava a voz de mamãe, ao longe, ecoando em minha mente: 

Mas, afinal, o que é que tem te incomodado tanto, Carol?

A falta de uma resposta, era o que me incomodava mais. O não saber, a prisão do limbo de não querer coisa alguma em específico mas, ao mesmo tempo, querer tudo que eu não tenho, tudo o que não sei. Lembro de todos os livros que li, todos os zilhões de letras, formando todos os milhões de palavras, formando todas as infinitas ideias e me sinto ainda pior. Talvez eu devesse me desculpar comigo mesma por tudo isso, mas, como não sei nem por onde começar, quero me desculpar com todos os autores que falam direta ou indiretamente sobre autoconhecimento, eu juro! Eu gostaria de encher os pulmões de ar, abrir a boca e dizer: o que me incomoda é tal coisa. Mas eu não sei. Se me aparece alguém agora com uma arma em minha têmpora direita e me diz para revelar o que tanto me aporrinha, eu não vou saber dizer. Vou dizer que atire, vou dizer que se eu soubesse, eu mesma atiraria na tal coisa. Eu diria a esse alguém: e você, por acaso, sabe? Você sabe o que te incomoda?

Será que alguém, afinal, sabe de alguma coisa? 

Eu penso que eu teria que me conhecer bem demais para saber de algo assim. Pode ser que sejam todos aqueles zilhões de coisinhas, como: a rachadura na parede, a tomada frouxa, a lâmpada fraca, o convite de casamento que não recebi, a roupa que nunca consigo desamassar, as cartas que nunca recebo, a cicatriz sob a minha sobrancelha. Pode ser que sejam todos aqueles zilhões de coisas imensuráveis que eu jamais conseguiria resolver: a falta de conhecimento sobre língua de sinais, o presidente eleito, a desinformação, o racismo velado, o sexismo parlamentar, a imprudência parental, o trabalho escravo, a idolatria ao capital, ou a estrada sem asfalto três ruas abaixo da minha casa.

A rua sem asfalto que fica três ruas abaixo da minha casa é uma das coisas que me incomoda, mas não é o meu incômodo todo. Eu penso que se chove, as pessoas que moram lá ficam ilhadas na lama, se é dia de sol, as pessoas de lá sentem dor nos pés de caminhar no cascalho. Não dá para andar de bicicleta em uma rua assim, quem anda cai. Pensar na rua sem asfalto me acalma porque não tenho que pensar em  mim, não tenho que pensar nos meus incômodos, no curso que não faço, no livro que deixo de escrever, nas coisas que não tenho coragem de dizer, na consulta que evito ir, nos eventos que cancelo sem motivo. Pensar em todas as ruas brasileiras sem asfalto me dá espaço para evitar pensar em tudo que tenho feito comigo, me faz trocar a ordem das coisas e concluir, erroneamente, que estou pensando nos outros antes de pensar sobre mim.

Será possível inverter todas as coisas assim?
Será que ainda dá tempo para pensar em mim?

Olho as paredes silenciosas, o escuro do quarto, as linhas retas do assoalho e concluo que preciso parar. A barragem rompida dentro de mim pode ser reconstruída antes que acabe com todos ao meu redor. É hora de se despir de tudo, criar coragem, encher o peito de ar e colocar o pé na estrada sem asfalto do autoconhecer-se. Uma micro luz se ascende dentro de mim, a coragem é o primeiro passo.

Se conhecer de verdade é como andar de joelhos em uma estrada sem asfalto, 
com os joelhos desencapados é que a gente conhece a nossa própria cor.  

com amor, 
Ane Karoline

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