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O montante de coragem necessário para pegar a caneta e colocá-la sobre o papel parecia muito mais pesado do que os meus 80 kg. Olhei para os lados: todos pareciam imersos em seus micro trabalhos. Tomei ar e me joguei. 

Mãe, 
sei que de tudo que você poderia ter feito por mim, você fez muito mais. Sei que de tudo que eu poderia fazer por você, não  faço metade. Posso imaginar o que uma mulher solteira, que não teve chance de construir uma carreira, tem que fazer para criar um filho que fale inglês e francês neste país. Me lembro de alguns de seus sacrifícios, de outros tantos eu jamais soube, para que eu me fizesse doutor - título concebido pela carteirinha da OAB, não por doutorado ainda.  Mas, mãe, não nasci para ser doutor, nem de uma forma, nem de outra. Tanto fez, que nada faço: arquivo, digito e converso. Nada faço. Não salvo vidas, como você salvou a minha. Não construo pontes, como você construía entre nossa casa e a sociedade. Não tenho feito coisa alguma porque o que sei fazer não é julgar gente, é descrevê-las, é criá-las, é reinventá-las em histórias. Sou um criador de histórias, lembra que você me dizia isso? E calhou que sei escrevê-las, minha mãe, muito mais que proferi-las. Só que o problema é que sabemos bem, eu e você, ainda que não tenhamos falado sobre isso, que o capital abomina a arte; o artista não é visto como produtor - ainda que todos o consumamos. O capital, minha mãe, é cruel, é como um deus grego que, quando mal humorado, ojeriza ambos adoradores e opositores. O capital não me aceita, mãe, e acho que você já sabe disso. Assim como você me conhece bem, eu também te conheço e conhecendo sua alma como conheço, sei que o desprezo que a sociedade tem pelos artistas jamais te incomodaria em ter filho artista, mas não sei se inventor de histórias coloca pão na mesa e é isso que venho te pedir: tens mais paciência ainda comigo, mãe. Haverei de escrever e, se não tivermos pão, teremos, ao menos, o trigo. Fato é que de tudo que eu poderia fazer por você, não faço metade, mas escrevendo, poderia transcender e fazer, não mais, mas com maior qualidade. Portanto, estou saindo do escritório e indo embora para escrever. Quando estiver com algo pronto, volto. Devo tudo a você. 

Voltei a mim quando senti uma presença se aproximando. Adailton apareceu antes que eu assinasse a carta, dobrei o papel  para que não parecesse distraído. Incisivamente, me cobrou os relatórios e eu os garanti para dali a duas horas. Mais uma vez, não puder fazer o que deveria fazer; o capital não me aceita, mas me amarra. Guardei a carta na pasta, junto com todas as outras para que eu me lembre: enquanto não posso viver de arte, que eu tenha alguma arte para viver. 

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