Fotografia com baixa velocidade (com câmera estabilizada)
imagem: pinterest

Pensei que seria diferente. O mundo todo girando, seguindo em uma corrida desenfreada em marcha ré, e eu parada, tentando. Eu quero andar para frente. Eu tento tanto, mas minhas pernas são pequenas e eu juro que estou correndo e eu vou enfrentar o mundo todo que vem trotando em marcha ré. A última parte sã da minha cabeça gira e entoa como ciranda: 

What the hell were you thinking? 
What the hell? 
What? 
The hell.
Eu pensei que seria diferente, respondo. 

Alguém me disse um dia que uma menina morreu enforcada com os próprios cabelos, com os próprios sonhos, consigo mesma. Eu fico sem ar, cadê meu fôlego? Eu acordo todos os dias às 3h da manhã para ver se meu cabelo está preso. Todas as noites na hora das bruxas, dos diabos. Eu pequenininha já pensava: eu não posso morrer, tenho que ajudar a mamãe. Uma criança pequenininha já pensa esse tipo de coisa. Eu, miúda, pensava que cresceria e seria grande, imensa, pensava que seria diferente. Pensei que não teria mais pesadelos com aquele dia: a gente indo visitar o vovô e alguém ataca o ônibus. Meu cabelo cheio de caquinhos de vidro, a mamãe passando pente fino e repetindo que eu não tinha nenhum arranhãozinho. Nada. Eu tinha só oito anos e o fôlego falta ainda hoje para contar. Eu tinha só oito. Com oito anos e os pezinhos sangrando, um monte de caquinhos de vidro verde no chão, era vidro de guaraná Kuat, e os pezinhos correndo para pedir ajuda. Eu sem fôlego ainda hoje, acredita? A professora me encarava e reclamava de não ter ido à aula e eu chorava sem lágrimas para dizer que minha décima andorinha tinha morrido. Tudo mentira. Aprendi logo: tudo é mentira. Eu nunca nem tive uma andorinha, é claro, mas queria ser livre como uma. 
peito 
pesa
e eu fico sem ar.

O negócio é que os pezinhos doíam. Meu deus! A professora não deixava tirar as galochas: não pode. Eu pensei que quando passasse mil horas, mil dias, mil semanas... Eu pensei que seria diferente. Eu pensava: quando eu crescer. 
Talvez eu ainda não tenha crescido tudo, será?
Eu ando muito é por isso: para ver se cresço. E crescer dói tanto, meu bem. Eu cresço e, ainda assim, a lama me vem até o pescoço. E eu entendendo tudo. E eu vendo tudo. Eu vendo tudo para não ter que ver mais o cachorro enlameado de ferrugem. 
Eu pensei que seria diferente.
Eu pensei que o mundo caminhava para frente.
Agora vejo: o mundo todo em marcha ré, a onda de gente, de lama, de bicho, de planta, tudo descendo a ladeira. Desmoronando. E eu tentando subir. Eu tentando correr para frente. Vamos!

50
anos
em 
5.
O sofrimento de cinquenta anos em vinte-e-cinco. 

Eu pensei que seria diferente. Seis anos para me emprestarem a tal beca preta por dez minutos, tudo preto, meus olhos lá vidrados e eu sem ver ninguém. Mesmo assim, eu juro para você, eu apostei tudo em nós. Em todos nós. Em todos os nós que achei que poderia desatar. Eu apostei tudo que eu tinha: eu mesma. Let's go, guys, can you, please, 
listen?
Eu tento tanto... Será que tento pouco? Try harder...
Cadê meu fôlego? Me solta! Eu preciso de ar. 
Eu preciso correr porque eu pensei que seria diferente e não é possível que não seja. Nada é possível. Vou ao cinema de novo, então, já que é assim. Vou ao cinema de novo e não é possível que eu não sinta nada. Pega a minha mão, vai, faz com que eu sinta alguma coisa. Faz com que eu sinta dor, pelo menos. Vai embora de novo e me deixa aqui sozinha para que eu sinta aquele choque no peito. Alguém tá ouvindo meu coração ainda? Ele tá batendo tão forte mas tão lento, ele não aguenta tanta força. 
What the hell were you thinking, afinal de contas?
Achou que daria conta?
É que eu pensei que seria diferente e foi por isso que fiz tudo que fiz: vai valer a pena, vai ser diferente, eu vou passar mais tempo com meus pais, vou passar mais tempo com minha melhor amiga que se casou anteontem e não me convidou. 
Silêncio. 
E minha cabeça, meu bem? Minha cabeça ainda está no lugar dela em cima do pescoço? Olha aí para mim que eu não quero passar por doida. Olha aí pra mim. Olha. Ok, guys, expressões idiomáticas: what the hell were you thinking? Diferente... Mas diferente de quê, meu Deus do céu? Eu falei com Ele, eu queria jogar na cara D'Ele: eu pensei que ia ser diferente! Pai nosso que estais no céu... E Ele? Calado. Deus calado. Tá me ouvindo? Ele só me olha, mas calado. Antigamente Ele sussurrava, hoje não. Desde o dia em que Ele ficou calado, eu fiquei também. Não sei mais falar nada, não fale comigo. Se ficar difícil demais de mentir, eu só vou dizer: uô ren rai, estou bem, em chinês. Quem foi que me ensinou isso? Quem foi que me deu essa cabeça imensa que pensa tanto? Que pesa tanto? What were you thinking back then? Eu sei que eu pensei que seria diferente e foi por isso que caminhei com pés sangrentos até aqui. 
Mas e se não for?
Eu não sei. 

Ane Karoline

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