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A
gente tem tanto medo de estar devendo, tanto medo de ser cobrado pelo que fez e
deixou de fazer, que quando, finalmente, decide fazer alguma coisa entra em
colapso e começa a se enfiar em problema. Isso é teoria minha, não tem base
científica, ela iria adorar. Formulei isso enquanto conferia pela vigésima vez
no GPS o caminho que deveria tomar e vi um cara com uma lanterna sinalizando
para o acostamento. Não um cara qualquer com uma lanterna qualquer, era um
policial na verdade. Porra. Habilitação vencida. Antes de abrir o porta luvas,
lembrei que pedi o Júnior para limpar o carro e ele tirou os documentos de lá.
Porra. Fui parando, desesperado, nem desliguei o GPS e só me lembrei dele
quando ouvi “recalculando rota”. Abaixando o vidro, olhei para as minhas bermudas sujas de molho do sanduíche e me lembrei da última mensagem de ano novo dela “Que
você tenha o melhor ano da sua vida, mesmo que você seja um mentiroso”. Certo.
-
Boa noite. - fui logo tentando agilizar o processo com o meio metro de policial que me abordava.
-
Vamos descobrir agora, ligue a luz interna, por favor. Documentação em mãos.
-
Esqueci em casa.
-
Onde é que o senhor mora e aonde está indo a essa hora?
-
Eu moro duas quadras para trás, vim comprar um sanduíche. – apontei para as bermudas sujas de molho – vim de pijama mesmo, acabei até me sujando.
-
E porque o senhor pegou essa via? - Ele me olhou desconfiado. Mentiroso filho
da puta, ele deveria estar pensando. Era o mesmo jeito que ela me olhava quando
me questionava sobre nós, parece que me lia: mentiroso. Minto. Se for para me
salvar, minto. Minto até se for para evitar a fadiga, como era com ela.
-
Eu ia pegar o próximo retorno, é mais iluminado e ali embaixo está um fumaceiro
desgraçado.
-
Desce do carro, por favor. – ele se afastou da porta para que eu a abrisse e se alongou olhando ao
redor preguiçosamente. Quando desci, tirei o celular do suporte que ficava
acoplado ao duto do ar para que, por via das dúvidas, ele não visse o GPS. Ele
deu uma boa olhada no carro, perguntou sobre porte de armas e me deixou ir. Se
foi sorte ou azar é que eu não sei. Não sei o que eu fui procurar quando saí de
casa, não sei o que eu estava procurando quando fui falar com ela pela primeira
vez, mas amaldiçoo as duas vezes: continuei sem encontrar.
Depois de demorar vinte e três minutos dirigindo na velocidade da via, estacionei porcamente na garagem de casa, dei uma checada no celular e vi que o
Maurício estava online, mandei uma mensagem convidando para jogar em casa na
sexta, para testar. Ele respondeu rápido e eu acabei contando por alto o que
tinha acontecido, longos minutos de espera se passaram antes que ele
respondesse “liga para ela” e eu liguei. Liguei no impulso, coisa que não era
muito minha, ela que era toda impulsiva, toda cheia das maluquices de quem não
pode esperar, não pode ponderar e age de forma passional. Três toques. A voz dela era sonolenta,
grogue “alô?”. Eu não disse nada, desliguei e disse para o Maurício que não
liguei, que a ideia era ridícula. Madrugada de um domingo para segunda, imagina
só se eu iria ligar para ela, e se o tal vendedor de seguros atendesse? Certo,
ela não costumava ser do tipo que levava um cara para dormir na casa dela, mas
e se agora ela fosse? Como é que eu tinha chegado a esse ponto, não sei; tão
pouco saberia dizer se era adrenalina, sono ou as cervejas que havia tomado na
tarde do domingo. Tudo que sabia era que o tal vendedor de seguros não atendeu
o telefone dela e não ligou de volta perguntando quem era; havia uma chance de
eles não estarem dormindo juntos e, de repente, isso me pareceu vital:
descobrir se ela estaria dormindo com ele, descobrir se ela pintava quadros
dele nu com aquele rosto roliço dele, descobrir se eles dividiam a cama e
sabe-se lá o quê mais dividiam.
A
coisa de pedir conselho para o Maurício era essa: ele não tem paciência e te
joga logo no meio do caos. Me mandou procurá-la e, mesmo sem admitir isso para
ele, eu fui sem hesitar; como se só precisasse de um cachorro de rua para me
olhar como confirmação. Na hora não deu nada, ela dormiu, mas e depois? E se
ela ligasse de volta? Eu ia ter que mentir de novo, que diferença isso faria à
essa altura? Demorei vinte minutos, ainda dentro do carro, sujo e com frio
feito um vagabundo, para conseguir decidir que, caso ela ligasse, eu diria que
liguei sem querer, que esbarrei no celular, aliás, que o celular estava no
bolso, eu, no bar, esbarrei no celular e nem percebi. No minuto seguinte,
decidi como descobriria se estavam juntos ou não; era só isso, prometi para mim
mesmo, só descobriria e depois a mandaria para o quinto dos infernos de onde
ela nunca deveria ter saído.
Caminhando
para dentro de casa, procurei novamente o perfil do vendedor de seguros,
encontrei o telefone, abri o aplicativo de mensagens e digitei o que eu achei
que seria o atestado de óbito dela dentro de mim “Tenho interesse em fazer um
seguro. Podemos nos encontrar amanhã?”
Ane Karoline