Lembro-me daquela noite como se fosse
ontem. A chuva era torrencial do lado de fora. O vento uivava pelas frestas da
janela, trazendo uma sensação de mau agouro. Eu estava sozinha em casa,
assistindo à um filme qualquer na televisão. O filme apenas passava, sem que eu
realmente prestasse muita atenção a alguma coisa. Minha mente cheia repassava
coisas inúteis. Já passava das onze da noite quando meu celular tocou. Eu
estava tão perdida em pensamentos que dei um pulo no sofá. Com o coração
palpitante, chequei o nome na tela. Era minha amiga Laura. Respirei fundo antes
de atender, na tentativa de não parecer uma maluca. Laura sempre falava demais.
Essa noite ela estava propondo que fossemos com o namorado dela visitar um
hospital desativado.
Sua
desculpa era a mesma de sempre. Era uma sexta-feira à noite, e devíamos fazer
algo legal. Além disso, era Outubro, o mês favorito dela. Conheço Laura há pelo
menos cinco anos. Nos tornamos amigas na escola, por razões que ainda não
compreendo completamente. Desde que nos aproximamos, ano após ano, ela me chama
para fazer algo terrível no mês de Outubro. No ano passado passeamos pelo
cemitério, pois havia algum tipo de frenesi na cidade sobre isso. No anterior,
passamos a noite dentro de um carro, viajando para uma cidadezinha próxima, com
rumores de ser assombrada. Lembrar-me daquilo já trazia a preguiça de volta.
Eu
detestava aquelas ideias malucas dela. Essa, no entanto, parecia-me a pior
delas. Aquele lugar tinha a pior fama possível. Diziam que o velho hospital havia
sido um lugar horrível e que abrigara pacientes com tuberculose e outros tipos
de doenças, há muitos anos. Embora não gostasse da ideia, Laura acabou me
convencendo a ir com eles. Ela sempre sabia o que falar para me convencer.
Fosse me chamando de medrosa, ou jogando na minha cara o fato de ser sexta à
noite e eu estar em casa assistindo filmes velhos. A coisa que eu mais temia
era que minha vida fosse miserável e entediante. Esses foram exatamente os
termos que ela sabiamente utilizou para me fazer tomar a decisão mais idiota da
minha vida. Ela disse que iria pegar o carro e chegar mais ou menos em uma hora
na minha casa. Me pediu que eu esperasse ela e vestisse roupas de frio.
Laura e seu namorado, Santiago, apelidado por
ela de San, chegaram na hora marcada com o carro. Deu tempo de pegar algumas
coisas e colocar na mochila, antes de entrar no carro e ir para aquela aventura
toda. Eu havia calçado botas de couro, pois detestava sentir meus pés molhados.
O casaco escuro era grosso e tinha capuz. O ambiente dentro do carro era mais
quente, talvez até demais. O rádio tocava algum tipo de música espanhola
desconhecida, mas bastante alegre.
No
caminho, a chuva aumentava consideravelmente e parecia não querer acabar mais.
Estava tão distraída que quando um relâmpago, seguido de trovões, cortou o céu
e clareou tudo, dei um pulo do banco, tamanho o susto. Era como se alguém
quisesse nos avisar que seria melhor voltar.
- Você está bem? - Laura perguntou,
olhando para mim pelo retrovisor com uma careta.
- Estou sim. - Menti.
- Não tem nada lá, ok. Não precisa ficar
com medo. É só um hospital velho e pessoas que sabem inventar boas histórias. -
Ela tentou me acalmar.
- Você sabe como eu sou.
- Não vai acontecer nada, vai ser
divertido, eu prometo. Não é San? - Indagou.
Ele
fez um leve movimento com a cabeça, assentindo.
- Ele não sabe falar nossa língua. -
Explicou minha amiga.
- Como fala com ele? - Indaguei
curiosa.
- Saber falar espanhol ajuda muito. No
começo foi bem complicado, mas aprendi muito com ele, e por ele. - Ela olhou
para minhas mãos, em meu colo, tremendo - Agora se acalma. Não deixo nada
acontecer contigo! - Ela deu uma piscadela.
Preferi
confiar nela naquele momento e seguir viagem sem pensar nisso.
Quando, enfim, nos aproximamos do local,
conseguimos ver a estrutura do hospital. O prédio era retangular e simples.
Devia ter seis andares. A estrutura ainda parecia bem sólida. As janelas
quadradas, dispostas a intervalos regulares, haviam sido tampadas por tábuas de
madeira. Talvez numa tentativa de evitar que gente como nós invadisse. Os
arredores do hospital eram muito sujos. O mato tomava conta da entrada.
Grades e portões estavam enferrujados e trancados, como um sinal de
abandono e solidão. Tudo isso concedia ao local uma aparência sombria.
San
parou o carro na frente do portão, e fomos criando coragem para entrar. Uma
rápida avaliação nos mostrou que seria impossível arrombar. O cadeados e
correntes ainda estavam muito firmes, apesar da ferrugem e corrosão. San deu a
volta no local e acabou achando um lugar por onde poderíamos entrar. A chuva
ainda caia pesada, afogando os sons ao redor. As nuvens acima eram um paredão
escuro e agourento. Hora ou outra os céus eram iluminados por clarões que
faziam doer os olhos. Achamos melhor pular por cima do muro, já que não
tínhamos nada que pudesse abrir o cadeado ou fazer um buraco. Fui a primeira a
acender a lanterna do meu celular. Por não ter muita coordenação, julguei ser
impossível para mim andar por ali sem cair miseravelmente.
Laura e San me imitaram, apesar de San
ter uma lanterna de verdade. O muro era baixo, e por conta da chuva, estava
meio mole. A pintura e o reboco estavam quase completamente descascados,
revelando os tijolos da construção. Depois de passar por ali, fomos andando por
aquela sujeira toda até encontrar uma porta branca de aço, o que parecia ser a
entrada que provavelmente dava para a recepção. A porta estava trancada.
Como estava escuro, não conseguíamos ver quase nada além do mato alto que
cercava aquele lugar. Na verdade, só consegui ver o mato porque havia um poste
que clareava um pouco na rua de trás. Era a única coisa que nos dava noção de
onde estávamos.
Fomos andando pela lateral do prédio, tudo
estava tão silencioso que só consegui escutar o barulho de minhas botas
ganindo. Eu estava com medo. Sabia que já estava muito tarde e aquele lugar me
causava arrepios. Por instinto, e frio, me abracei. Enfim, conseguimos achar
uma janela aberta, depois de alguns minutos andando. Ainda havia vidro no
batente, então San pegou um pedaço de lona velha e rasgada que havia ali por
perto e o cobriu. Entramos.
Eu
não sei se fui a única a ouvir aquilo, mas tinha alguém gritando lá dentro. Um
grito de puro terror que fez minha espinha gelar. Eu quis voltar imediatamente.
Virei a lanterna do celular e apontei para o local que tinha vindo o grito.
Percebi que a janela que tinha pulado para entrar dava para um corredor longo,
vazio e mofado. A tinta na parede descascava nos pés das paredes. O teto estava
cheio de infiltrações e a lama havia criado uma crosta no chão.
Por
instinto acabei procurando meus amigos. Mas, para minha surpresa e pânico,
quando olhei para trás nenhum deles estava lá. Chamei por seus nomes, sem
resposta. Segundos depois tive a certeza que eles não só tinham escutado o
grito, como também tinham ido embora, pois escutei o carro fazer barulho de
partida. Voltei para a janela, com a intenção de pular para fora novamente e
gritar por socorro. No entanto, no momento em que dei o primeiro passo, o topo
da janela desabou. Pedaços de madeira e concreto se entulharam, fechando a
saída e trazendo uma onda de poeira. Cobri o nariz e a boca com as mãos e dei
alguns passos para trás, para evitar ser atingida por alguma coisa.
Foi
quando senti algo que me fez perder o chão. Alguém respirava bem perto do meu
ouvido. Eu podia sentir a sua respiração fria. Meu corpo travo. Eu sequer
conseguia correr, que dirá me mexer. Então fechei os olhos e esperei aquela
sensação horrível passar. O que de nada adiantou. A sensação de que havia
alguém atrás de mim era tão forte que me fez tremer. A presença era latente, e
queria me fazer mal. Os pelos em minha nuca se eriçaram. Ouvi passos ao meu
lado. Então um vento forte. Sem entender nada, ouvi os passos se aproximarem de
mim.
- Pegue a minha mão! - Disse uma
voz na escuridão.
Era uma voz masculina. Humana. Eu não
estava só, afinal. Por pânico, ou instinto assim o fiz. Agarrei uma mão firme,
de homem, macia e úmida. Saímos correndo pelo corredor, e eu ouvia os risos da
criatura que estava atrás de mim, senti os dedos finos da pessoa apertar minha
mão e acabamos correndo mais rápido.
Entramos em uma sala com portas duplas
de madeira. Parecia um laboratório e tinha seringas, papéis e algumas caixas de
remédio no chão. Tudo estava bagunçado, como se alguém houvesse passado ali com
desespero. Senti lágrimas se formarem em meus olhos, e o típico nó na garganta.
Eu tinha tanto medo que meus dentes batiam.
- Esconda-se aqui. - Disse a voz
masculina que me guiava.
Senti sua mão pegar a minha,
gentilmente, enquanto a outra tocava minhas costas e me guiava, colocando-me em
uma espécie de armário. Era pequeno, mas eu também era. Caberia ali
perfeitamente.
- Faça silêncio. - Ele ordenou,
gentilmente.
-E quanto a você? - Indaguei.
- Vou distraí-lo. Espero alguns minutos
aqui, antes de sair. Procure uma saída, seguindo a luz do luar, e não olhe para
trás. - Orientou.
Então a porta foi fechada. Ouvi ruídos,
como se ele colocasse algum tipo de tecido sobre o armário. Eu estava muito grata
a ele, quem quer que fosse. Fechei os olhos, tentando apurar minha audição.
Fiquei escondida ali por algum tempo, o que pareceu uma eternidade. Escutei
algo arranhando o chão. O barulho dava muita agonia. Também ouvi de novo aquela
respiração densa e pesada que a aquela "coisa" tinha. Eu ouvia
as coisas caírem no chão, sussurros e portas abrindo e fechando. Cobri a boca
com a mão, tentando não fazer barulho, enquanto as lágrimas escorriam por meu
rosto.
Eu não me lembro de quantas orações fiz,
mas alguma pareceu dar certo, pois tudo passou. Jurava que iria morrer, quando
alguém abriu o armário pequeno que eu estava. Cheguei a prender a respiração,
de tanto medo, mas era apenas a pessoa que me guiava.
- Temos que sair daqui. - Notei a urgência
em seu tom de voz e me apressei.
Levantei-me e comecei a segui-lo, sob a luz da
penumbra. Ele não parecia muito alto. Pude ver que tinha ombros largos e braços
compridos.
- Como? Quando eu entrei aqui as portas e
janelas estavam trancadas. - Falei em meio à respiração entrecortada.
- Tem um jeito... Mas é perigoso.
- Qual jeito? - Eu faria qualquer coisa
para sair daqui.
Ele não conseguiu me responder. Começou
a tossir muito, e, repentinamente, um barulho ensurdecedor invadiu o local.
Cobrimos os ouvidos e fechamos os olhos. Uma música clássica começou a tocar.
Era tão alta que achei que ia ficar surda. Apertei mais as mãos contra os
ouvidos e comecei a andar. Eu só queria sair daquele inferno, nem que fosse
sozinha.
Esbarrei em alguém no corredor. Abri os
olhos e percebi que algo iluminava meus olhos. Eram Laura, San e sua lanterna.
Arregalei os olhos, uma mistura de susto e medo. Como eles poderiam estar aqui?
- Vocês não tinham ido embora? -
Indaguei aliviada e desconfiada.
- Não sei do que está falando. - Disse
Laura, rude - Vamos embora!
A
música parou e eu ouvi alguém tossir, ao longe. Olhei ao redor. Meu guia havia
sumido.
- Você está ouvindo isso, Laura? -
Questionei.
- Não estou ouvindo nada. Vamos logo!
Não discuti com ela, apenas a segui. Eu
tinha que sair daqui. Me convenci de que poderia mandar ajuda para o rapaz que
havia me ajudado, uma vez que estivesse fora daqui. Fui andando com Laura e San
pelo hospital, e, a cada ala que passava, sentia um arrepio. Eles andavam
juntos na minha frente, e eu não entendia mais nada. Meus amigos estavam muito
estranhos. Vi eles conversando normalmente na minha frente. O que chamou minha
atenção, no entanto, foi que San, por incrível que pareça, estava falando em
português. Com um pavor que congelou meu estômago, cheguei à constatação de que
aqueles não eram meus amigos.
Fui
deixando eles andarem na frente e fui para uma sala que tinha uma escada que
dava acesso a uma sacada. Quando entrei, encontrei um figura estranha, perto de
uma janela quebrada com uma fina cortina. Já estava amanhecendo, e, com a luz
que vinha do exterior pude ver que aquela figura vestia um pijama azul e tinha
a pele pálida. Um rapaz, menos de vinte anos. Ombros largos e braços compridos.
Cabelos finos e escuros, o rosto deformado com marcas de queimadura.
- Bem vinda ao meu quarto. - Ele não
sorriu.
- Quem é você? - Perguntei, mesmo que meu
cérebro me gritasse a resposta.
Estava
tão assustada, que meu coração parecia querer sair pela boca. Só fui reparar
que estava em um quarto quando aquela figura falou. Notei que ele estava em uma
das camas do hospital. Havia mais uma cama, ao lado da do rapaz, com lençóis
velhos, cobrindo seu ocupante.
- Eu te ajudei a fugir daquela coisa. Me
desculpe por isso, mas acho que o que tem ali embaixo vai te interessar. - Ele
disse com a voz aveludada.
Dei uma última olhada para ele, e
caminhei lentamente em direção à cama. Havia dois corpos ali. Quando puxei o
lençol não acreditei no que os meus olhos viam. Laura e San estavam mortos,
debaixo daquele lençol. Não eram eles que tinham ido embora, e nem eles que
estiveram comigo há minutos atrás. Não aguentei aquilo. Minha cabeça doía tanto
que senti tontura. Tentei me agarrar a algo, inutilmente. Minha visão começou a
turvar e escurecer. Desmaiei.
*
Quando acordei estava em um hospital. Em
um que funcionava, pelo menos. Quando meus olhos se acostumaram à luz, vi que
havia duas enfermeiras no quarto. Elas conversavam com um policial. Quando viu
que acordei, ele avisou às enfermeiras e se aproximou. Perguntou se eu estava
bem, se sabia qual era o meu nome e que dia era hoje. Enfim, parou de rodeios e
foi direto comigo.
- Onde você estava ontem?
- Eu estava no hospital
desativado... Mas o que aconteceu comigo? - As memórias estavam confusas em
minha cabeça. Eu sentia dor.
Deslizei as pontas dos dedos por trás da
cabeça e senti uma elevação ali. Um tipo de hematoma. Deve ter sido
consequência do desmaio.
- Você é a principal suspeita do
assassinato de Laura Freitas e Santiago Munhoz. Os dois foram mortos há uma
semana. Seus corpos foram encontrados no apartamento que eles dividiam.
- EU? - Indaguei descrente. Minha
voz se elevou e comecei a ofegar.
O choro foi inevitável. Eu era inocente.
Tentei explicar a ele que Laura estava viva quando falamos no telefone. Que
eles haviam em levado ao hospital. Tudo era real, eu sabia. As enfermeiras
pediram que o policial voltasse novamente depois, pois eu havia acabado de
recobrar a consciência e precisava de descanso. Elas o levaram para fora,
deixando-me sozinha no quarto. Chorei ainda mais pesado, por tristeza e culpe.
Pensei em Laura e San, pensei nas acusações que aquele policial havia
feito.
Alguém me ofereceu um lenço de papel. Achei
que as enfermeiras haviam voltado. Porém, quando me virei, vi o mesmo garoto de
pijama azul que eu conhecera no hospital antigo. Ele sorriu, dessa vez. Eu
fiquei estática, encarando-o. Ele aproximou-se de mim, curvou-se de forma que
nossos rostos ficassem próximos e sussurrou no meu ouvido:
- Pronta para viver naquele inferno?
-Wendy Liu