5 Surprising Scientific Facts about Earth’s Climate - Foundation for Economic Education
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Existem lugares e lugares. Existem lugares-cartões-postais: para onde muita gente quer ir, para onde muita gente vai nas férias e para onde uma quantidade ainda maior de gente não pode ir - não pode pagar para ir. Essas pessoas que não podem ir aos lugares-cartões-postais moram nos lugares-capas-de-jornais: para onde ninguém quer ir, onde muita gente morre, onde não tem mar, onde não tem escola, onde não tem hospital, onde não tem emprego. Cresci em um lugar-capa-de-jornal. Crescendo em um lugar assim, a opção menos dolorosa de diversão encontrada pelos meus pais foi a Disney. Sim, a Disney. Não, não o parque monumental em Orlando, a Disney em casa - em formato de fitas VHS de todos os filmes. Esse hábito, que me era quase diário, me trouxe muitas coisas boas - inclusive, me livrando dos perigos reais aos quais brincar na rua me exporia - e muitas coisas ruins também - idealização de vida a partir do imperialismo, busca por padrões de beleza, dificuldade em me impor como mulher... Afora as problemáticas (que são assunto para outra conversa), a Disney me permitiu sonhar. É nesse ponto que entramos na data de três de janeiro de 2020, hoje. 

Não sei como era o cinema nos anos 90, quando eu era criança, porque meus pais nunca puderam nos levar ao cinema - fui ao cinema, pela primeira vez em 2001 com minha madrinha. Entretanto, eu sei como é o cinema hoje: hoje o filme Frozen 2 está em cartaz e eu e o João tivemos a chance de ir assisti-lo. Eu tenho 24 anos, o João tem 2, nos conhecemos hoje porque nos sentamos lado a lado para acompanhar as peripécias inventadas no reino gelado. A classificação indicativa do filme é livre, ou seja, o João e eu estamos dentro da mesma categoria: temos idade suficiente para ver o filme. Entretanto, ele tem coisas que eu não tenho - pelo menos, não mais - como coragem de falar com estranhos, espontaneidade à flor da pele, 100% de energia e tamanho suficiente para ficar de pé na poltrona do cinema. Eu, claro, também tenho coisas que ele não tem - pelo menos, ainda - como mais paciência, mais tempo de concentração, história maior para contar, muita vergonha e idade para ter visto Frozen 1. 

Infelizmente, minha história com o João foi muito breve. Acontece que ele é muito conversador, logo nos primeiros minutos, ele decidiu me contar que o cinema estava escuro igual às florestas e que os lobos vivem nas florestas. Assim, ele achou que seria apropriado começar a imitar um lobo, uivou por alguns segundos e todos riram. Pela celebração, e pela demora do Olaf em aparecer na tela, João continuou a uivar - agora de pé na cadeira. Os "shhhhhhh!" começaram. 
"O lobo faz assim ó: auuuuuu"
"shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!"
"o sapo não lava o pé, não lava porque é lelé"
"shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!"
cochichando: "sabe como o lobo faz, mamãe?"
"shhhhhhhhhhhhh"
Após cerca de quinze minutos, o João já havia construído seu próprio show de pé na minha frente, dançando, pulando, cantando e uivando, ora perguntando sobre o filme, ora contando histórias inventadas. A impaciência ao redor venceu e a mãe do João resolveu que era demais, pegou o João pelo braço e foram embora. Dei uma olhada em volta: maioria de adultos. Os adultos terminaram, então, de consumir o american dream sem o João. Eu vim para casa pensando: será mesmo que não cabia o João ali? Onde mais haveria de caber uma criança que em uma sessão de um filme com classificação infantil? Cabia sim.

O que ainda falta no João, por falta de idade, tem que sobrar no adulto: senso de coletividade. A gente não existe só, isolado, aleatório, descontínuo. Pelo contrário, somos a continuidade da criança que fomos. A infância não existe antes, descolada, não é uma pré-vida: a infância já é a vida, a criança é gente. Gente precisa ter experiências, gente precisa conviver com gente, gente precisa viver. Excluir uma criança de um local público é roubar dela a chance de conviver, viver e crescer. Excluir uma criança, com seu comportamento infantil, de um local público, é, também, excluir quem está em situação parental, é excluir, acima de tudo, a chance de quem está em situação parental de viver momentos públicos com a criança, não há nada que substitua isso. 

Se, no filme infantil, o João ainda não tinha maturidade para ficar sentadinho e calado por duas horas, talvez coubesse a todos nós ali - não só à mãe dele, que fez o que pôde - ajudá-lo a passar pela experiência de estar ali pela primeira vez. Poderíamos tê-lo ensinado sobre empatia, paciência e sobre respeitar o espaço alheio, mas não o fizemos. Uma criança é responsabilidade da sociedade inteira. Por fim, posso dizer que me arrependi um bocado de não ter batido um papo verdadeiro com ele e de não  tê-lo convidado para aproveitar a história do filme comigo, sem deixar de ser criança, sem deixar de sonhar.

com amor e educando para a paz, 
Ane Karoline

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