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Meu dias não começam mais no começo. Alguns deles acabam e nem sequer começaram. Explico: escuto o alarme, abro os olhos, penso sobre o ontem, o hoje, o amanhã e sobre a perspectiva de que sejam exatamente iguais. Suspiro. Levanto o corpo da cama sem levantar a alma, faço de um tudo enquanto espero que o dia comece. Eu fico esperando que algo aconteça, algo que me arrebate, algo apareça para mostrar que o mundo ainda vale a pena, para, então, o meu dia começar. Nem sempre acontece, então, nem sempre o dia começa, só passa. Acontece que, dia desses, um dia começou e saiu começando vários outros depois dele.

Alarme, olhos abertos, pensamento em perspectiva, chão frio, água quente, café amargo, trânsito, a mesma vaga difícil de estacionar. O livro, marcado na mesma página há três semanas, pesando um pouco mais a cada dia dentro da bolsa. O sono incompatível com o montante de horas dormidas. Outro café, frio e com poeira dentro. Suspiro. Entro na sala de aula e enfrento a odisseia diária até a minha mesa.
- Teacher!
- Miss!
- Teachêer! 
- Você sabia que ontem...
- Teacher, olha aqui...
- Miss, my homework...

Até aí, dia ainda adormecido. Caminho com a calma de uma esfinge, deposito a bolsa na mesa, ouço uma vozinha atrás de mim
- Teacher, você está tired?

Entre enganá-la e decepcioná-la, optei pela segunda. Sorri como pude e disse que sim. Foi aí que tudo começou. 
- Mas cansada de quê? Você também faz judô? Eu faço judô até alguma hora bem tarde da noite e, mesmo assim, não fico cansaaaada, sabe? É que eu gosto muito de judô, eu vou ser uma grande judoca quando eu for grande. Como é judô em inglês?

Alguma coisa se moveu dentro de mim. Nem mesmo a empolgação que sempre me toma ao ver o bilinguismo operante foi capaz de me distrair do ocorrido, alguma coisa na paixão da fala dela me sacudiu. Minha mente começou a girar sobre dois detalhes:
A paixão pelo judô e a esperança de ser uma grande judoca. 

Tudo começou a girar em torno da vozinha "mesmo assim, não fico cansada". A lousa, os livros, os vinte e cinco pares de olhos me olhando, as burocracias, os aprendizados diários, Charles Dickens por ler, meu romance por escrever, tudo girando e o peso do insight caindo como um raio sobre a minha cabeça. 

A esperança e a paixão trazem sentido à vida, a servidão não.

Nada no mundo me obrigava a estar ali, de pé por horas, insistindo em criar experiências de construção de conhecimento com aqueles seres humanos com menos de uma década de vida. Eu estava ali, empenhando todo o meu suor e sangue, por opção. A razão, então, de os dias terem se metido no limbo sem começos e sem finais estava clara: a servidão sistemática havia enforcado a minha paixão e bombardeado minha esperança. 

Nada no mundo, com exceção da mão invisível do capitalismo, me obrigava a estar ali. Certo. E, tampouco, nada no mundo me incentivava a estar ali. Ao contrário, as quatro horas diárias no trânsito, os mendigos nas ruas, o medo, a violência constante, o ódio, os telejornais, a política, o trabalho infantil, o racismo, o sexismo, o desespero, a fome, a miséria, a falta de perspectiva de melhora... Ao contrário, tudo me abatia, literalmente, me cortava aos pedaços e me servia aos lobos. Tudo, tudo, tudo caiu sobre a minha cabeça ali no meio daquela sala de aula. Eu não fazia judô, mas tudo isso me cansava muito mais do que levar uma boa surra de uma judoca profissional. A desesperança espanca calada. 

Pensei em Brown, 
what principles?

Olhando para eles, miúdos em estatura e imensos em amor, sentia, finalmente, meu sangue pulsando. O afeto, a vontade, a paixão, estava tudo ali escondido dentro de mim. Não há em mim qualquer desgosto ao ensinar, mas onde foram parar os principles? Onde foi parar fé de Freire e o cientificismo de Chomsky? Escorreram pelos meus dedos, mas quando? 

As pessoas, vestidas de verde e amarelo, berrando, vieram à minha mente. Os discursos do presidente, professores em retirada, estudantes recebendo bala da polícia, a verba que ninguém sabe se vem, o ataque à ciência, o medo, trabalhadores condenados ao trabalho perpétuo. O país vendo os professores como inimigos. Entendi e doeu once more. A minha paixão pela educação, os principles de Brown, a fé de Freire, tudo sendo esmagado pelo ódio e pela servidão ao capital e é necessário um esforço danado para se levantar, para não se deixar esmagar, para respirar fundo e continuar - ainda que não se saiba bem o quê. Meu cansaço é esse, pensei. Estou cansada é de não me deixar esmagar, não posso me deixar esmagar. 

Respirei, olhei para ela, minha cabeça a mil. Sorri. Respondi
- We say judo

Continuar, ainda que cansada. Swim under the storm.  Comecei minha aula, comecei o dia. 

com amor, 
Ane Karoline

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