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Verão

O fundo da minha garganta em brasas, meus olhos vermelhos, cada gota que escorre pelo meu rosto é tão quente que me queima. Me ardo toda em cólera. Duas e dezessete da manhã marca meu relógio digital de pulso. Me livrei de todos os relógios de ponteiro porque eu estava certa de que eram eles que me atormentavam o juízo com aquele tique-taque todo. Logo eu, a criança prodígio que se orgulhava de usar relógio analógico aos oito anos de idade, fui me livrar de todos os meus relógios de ponteiro porque estava ruim da cabeça e precisava de algo, algo que não fosse o verdadeiro culpado, para culpar pelas minhas neuroses crescentes. Às duas e dezoito percebo que estou tremendo. Literalmente. Meu corpo inteiro treme, o café chacoalha dentro da xícara e eu olho para aquele pequeno mar negro redondinho trêmulo, solto, líquido, como eu. Há muito tempo não sou mais matéria física inteira e palpável; me derreti, me diluí.  

Outono

Eu mesma me pareço tão árida, estéril, que já não sei se tremo de medo, dor ou de frio. Meu cabelo molhado, pingando, ensopando a camiseta fina de algodão, me lembra que ainda existe fisicalidade em mim e que posso sentir frio; pelo menos, penso, os problemas físicos são mais fáceis de resolver. Se tivesse cortado o cabelo, como combinei comigo que faria, não estaria com tanto frio; mas deixei de cumprir as promessas que me faço, meu maior problema foi ter perdido a fidelidade comigo mesma: me cobro muito e me cumpro pouco. Me deixei passar frio por mais alguns minutos para não ter que enfrentar o tremor interno, o tremor do oco, do vazio que existe dentro de mim – o qual venho evitando enfrentar há tanto tempo. 
Duas e vinte e um, ao trocar a camiseta molhada, eu me olho bem, olho o corpo que abriga a minha alma e vejo que é mesmo um corpo que parece frágil, um corpo comum, nada excepcional. Não sei quando foi que enfiei isso de querer ser excepcional na cabeça, um corpo frágil, sim, mas é um corpo bom, abriga minha alma, deveria ser tratado com mais carinho. Duas e vinte e dois, duas vezes a minha idade, agora agasalhada e sem o tremor de frio, me ouço e percebo que estou realmente vazia, oca, parece que dividi tudo que sou em pedacinhos e dei às pessoas para que elas completassem sua incompletude. Deixei o que restou da minha alma habitando o vazio, esse último e único pedacinho, necessário para que eu exista, está persistindo isolado à vácuo; só ele só. Se eu gritar agora, vou receber o eco de volta, ninguém vai ouvir. Quando eu era uma criança prodígio, eu gritava dentro do guarda-roupas e ficava sentindo a leveza das ondas sonoras que voltavam no eco; cientista, sempre fui. Exceto de uns tempos para cá, nesses últimos tempos tenho me traído muito; me sacaneei tanto que não sei se vou me perdoar. 

Inverno

É silêncio lá fora, mas a ventania dentro da minha cabeça está sacudindo minha massa cefálica, me tirando o juízo. Agora sei que não são os relógios de ponteiro porque eu dei um fim em todos, eu me livrei de tudo que fazia barulho na minha cabeça, eu queria o silêncio total – antes de saber que ele dói tanto, que ele é gélido como o vento frio no dia quatro de julho no Brasil. 
Decido que não vou mais olhar as horas e, já que haverei de ficar acordada mais uma vez, haverei de enfrentar esse tremor que existe dentro de mim e que, agora, não é mais frio, é medo. Eu tenho tanto medo de ter estado errada esse tempo todo. Ter estado é um tempo perfeito que nem, sequer, existe na minha língua materna. Não é possível que eu tenha aprendido tantos idiomas para me olhar agora e me achar tão pequena, não é possível que eu have been wrong esse tempo imenso da minha vida.  Meu plano era muito claro, muito simples, muito nítido e prático; no final, tudo daria certo e eu, à essa altura, estaria sorrindo feliz pensando em, quem sabe, ter filhos em alguns anos; publicando dois livros por ano e ajudando todas aquelas crianças descalças que entregam papelzinho no ônibus. Eu achei mesmo que era uma coisa passageira o sofrimento do mundo e que, à essa altura, eu teria dado um jeito naquela menininha descalça que tinha as solas dos pés calejadas; achei que havia algo de excepcional em ser essa alma líquida, ainda que dentro desse corpo esquálido, nada excepcional. Minha mente fica ecoando as palavras que li: não existe nada de excepcional em nós. Não é possível que já passem das três horas e eu esteja, ainda que agasalhada e sob um teto, tremendo pura e simplesmente por ter me descoberto irrisória. Pode parecer irrelevante, me disseram, e não parece: é. Existiu sempre essa voz na minha cabeça, tirando meu juízo para me alertar da minha insignificância e eu fui abafando o som, me enchendo de um monte de sons alheios; se alguém quisesse me contar um problema, olha eu ali, a problem solver dos outros para evitar os meus. A voz aqui o tempo todo, dentro da minha cabeça, me dizendo que tinha alguma coisa me tirando o juízo, que era melhor eu parar para pensar. Parar para pensar. To stop. Pare. Reprovei duas vezes no teste de direção por excesso de velocidade. Está claro que não parei, não parei para pensar porque eu não quis pensar, eu não quis ver o que eu veria se eu parasse para pensar como parei agora. Eu não queria ver esse cenário desastroso e, finalmente, acreditar que as pessoas são egoístas. Não, eu insistia com alguém em um debate na aula de filosofia: o homem não é naturalmente mau. Não, eu quis gritar na cara de todo mundo quando aquele homem roubou um quilo de carne moída no supermercado, ele não é um perigo. Eu quis gritar e não gritei, não gritei porque eu não grito. Ninguém nunca me viu gritar e é por isso que eu estou me tremendo agora. Na aula de teatro a professora disse: gritem. Eu fiquei olhando todo mundo gritar, todo mundo vivo e eu, morta, congelada, fiquei com a boca aberta com o grito preso em algum lugar dentro de mim, sem gritar. Achei que a minha excepcionalidade era essa: não gritar. Mas não existe nada de especial em falar baixo, eu falo baixo e ninguém me houve. Nem aqui, passando a madrugada em claro, com um cabelo molhado sem pentear, me tremendo de ressentimento, se me aparecesse alguém e dissesse: grite. Ainda assim, eu sei que não gritaria porque minha natureza é ser contida. Contenho, contenho, até me explodir. E agora, à essa altura, não tenho mais mesmo o que gritar; não existe nada dentro de mim para ser gritado, levaram tudo. Agora há pouco,  ainda me acusaram de insipidez: tem algum problema físico com você, ouvi. Tem. Tenho o problema físico de estar, milagrosamente, de pé depois de ter me doado tanto. Achei que havia algo de heróico nisso de se doar e, principalmente, de acreditar. Acordei todos os dias até hoje crente, acreditando nas pessoas, acreditando em alguma coisa.  Até que acreditei tanto, mas tanto, que deixei de acreditar em mim. Não é possível que eu tenha acreditado até aqui para cair nessa versão ridícula de decadência burguesa pálida e triste. Não é possível que tenham me usado tanto, me atormentado o juízo a ponto de me fazer virar niilista; ou é? Como é, me pergunto, que deixei me jogarem no fundo do poço. Parando para pensar agora, que é tarde mas não é nunca, percebo que já não tremo mais, se era medo, frio ou dor, não sei. Fecho os olhos e conto: um dois, três, até vinte e três. Lá dentro, sinto uma pontada última quando penso, involuntariamente, no rosto que não queria ver. Deixei que a onda de dor reverberasse no meu corpo com força. Tem um poema que diz: para curar, beije a dor até a raiz; foi o que eu fiz: doeu, doeu, doeu até não doer mais. 

Primavera

Abro os olhos, olho para o café frio pensando em quantas pessoas iniciei nesse hábito de tomar café. O silêncio cortante me disse que o que me tirava o juízo era o medo; o medo de estar errada sobre todas as minhas crenças infantis criadas a partir de filmes da Disney, nos quais não havia crianças descalças, genocídio e, muito menos, relacionamento abusivo. O café me olha de volta e, se mexendo com minha movimentação, parecia me aplaudir quando, finalmente, eu entendi. Abusivo, que resulta de uma situação injusta, incorreta; impróprio, diz o dicionário. Ah, meu santo dos juízos perdidos, então é assim que acontece; a gente não vê. Então é assim, tira o nosso juízo, suga tudo que a gente tem e, ao ir embora, nos culpa dizendo que não somos excepcionais. Olhando minhas mãos que, agora, sem um referencial maior não parecem tão minúsculas, quase pude ver as chagas por ter segurado a barra por tanto tempo. Então é assim, pensei de novo, que mesmo tendo lido tanto sobre um assunto, a gente cai na armadilha. Pensei que eu jamais cairia, e estava errada. Estava errada, mas não como achei que estivesse. Eu estava errada por todo esse tempo porque achei que alguém que nem, sequer, consegue perceber minha excepcionalidade fosse capaz de me amar. Estive errada esse tempo todo em me subjugar, me sujeitar a gastar tantas horas e tantas palavras para tentar entender uma relação que nunca fora nada além de uso. Tive que gastar mais essas mil e seiscentas palavras para entender que entrar e sair da vida de alguém, quando bem convém, é abuso.

Ane Karoline

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