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Já cheguei entrando com força e batendo a porta atrás de mim, como se nesse gesto infantil eu pudesse descarregar tudo que vinha pesando dentro do meu peito. Por sorte, não havia ninguém em casa, se o vô estivesse lá, teria gritado do seu quarto quebra não, jóia, e depois teria sorrido. Ele me chamava de jóia desde sempre, minha mãe gostava de contar que no dia em que ela voltou do hospital, comigo a tira colo, ele disse: ela é muito menor do que eu esperava, mas é uma jóia.  Minha cabeça ainda doía e parecia que tinha uma escola de samba enredo a todo vapor dentro dos meus tímpanos. Chutei os sapatos para o canto da sala e resolvi checar meu celular, parecia estar tocando enquanto eu subia as escadas até o apartamento – coisa que eu fazia quando queria evitar conversas com meus vizinhos. Realmente, havia três chamadas perdidas do escritório e uma do celular do número da Aninha – que foi justamente para quem resolvi retornar, seja lá o que tivesse acontecido, ela me diria com mais sinceridade e doçura que a secretária. Ela atendeu no segundo toque:

- Está tudo bem, Cecília? – ela parecia estar mastigando alguma coisa
- Aham, e você? O que houve?
- Comigo? Nada! Você está com dor de cabeça mesmo ou aconteceu algum...a cou... coisa? – definitivamente, eram churros, ela só ficava com a boca cheia assim quando comia churros.
- Eu estou com dor de cabeça mesmo, Aninha. Não está comendo churros em cima da minha mesa, né?
- Hum... Sei não, você saiu daqui com a maior cara de poucos amigos, fiquei preocupada.
- Não se preocupe, só dor de cabeça. Amanhã a gente se fala, tá? – ela já parecia mais tranquila, me recomendou três analgésicos diferentes e disse que mais tarde ligaria.

Me peguei pensando naquela frase por muitos minutos ininterruptos: cara de poucos amigos. Apesar de ter errado em sua previsão – o que eu sentia era pura e simplesmente dor de cabeça – Aninha me conhecia muito bem e deveria saber que se as caras das pessoas estampassem quem elas realmente são, a minha seria exatamente assim: cara de poucos amigos. Principalmente em meus dias mais alegres, nos momentos mais felizes de minha vida, minha feição estamparia com muita força e gratidão a minha condição de ter sempre poucos amigos. Sem contar com meus pais, aos vinte e seis anos de idade, eu tinha exatamente cinco amigos: minha irmã, a Carol, a tia Jô, o Luquinhas da escola, e a Aninha – que agora, desde que o vô falecera, faz o papel de amiga mais engraçada, maluca e cuidadosa. Cabiam todos em minha mão, assim, jamais deixaria de dar assistência a nenhum deles, jamais estaria ocupada demais para nenhum deles e, com relação a mim, eles sempre agiram da mesma forma: nunca deixei de ser importante.
Ao levantar do sofá para procurar os analgésicos indicados pela Aninha, vi meu reflexo desordenado na tela da TV desligada e pensei que, ainda que, por diversas razões, não fosse exatamente com esses pessoas, essa é exatamente a cara que eu ia querer sempre ter: de poucos amigos. Se o vô estivesse sentado ali no sofá, ele me diria que qualidade deve vir antes de qualidade, isso sim é uma jóia.

com amor, 
Ane Karoline 
- texto do desafio 24 textos em 24 horas


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