Celine
                Mais uma noite chuvosa em Berk, e Celine não poderia estar mais acostumada. Depois de enfrentar obstáculos que jamais teria imaginado, a garota aproveitava a calmaria que havia se espalhado após os eventos contra o doutor Black. Um ano havia se passado e, ela finalmente conseguia dormir sem ter pesadelos. É óbvio que depois daquilo as portas estavam sempre trancadas. Algo mais a deixava relativamente tranquila. A arma que Stella a havia entregue naquela noite ainda estava com ela, guardada em uma caixa de sapato em seu guarda-roupas.
                Ela sabia que talvez jamais tivesse coragem de usa-la, mas ainda sentia certa segurança ao tê-la ali. Em seu quarto o aquecedor tornava o lugar confortável e ameno. Ela lia um de seus livros favoritos de Jane Austen, sob a luz fraca do abajur, enquanto desfrutava de um bom chá. Tudo parecia tranquilo, e ela tinha planos de ter uma bela noite de sono, sem nenhuma preocupação. Tudo teria dado certo, se não fosse por aquele maldito sussurro.
                Começou com um vulto, sempre no canto mais escuro do quarto. Celine deu um pulinho na cama quando sua visão periférica viu o movimento e o borrão. Ela apertou as bordas do livro enquanto ofegava e sentia seu coração disparar. Se esticou na cama, completamente alerta. Não poderia ter sido uma sombra, pois as cortinas do dormitório estavam fechadas. A universidade de Berk nunca mais seria a mesma depois dos eventos de um ano atrás, mas tudo o que ela não precisava agora era de um novo motivo para ter medo.
                Instintivamente sua mão procurou pelo celular, na cama. Assim que o alcançou o sussurro deslizou pelo quarto. “Encontre Kelly”, dizia. Dessa vez ela realmente pulou na cama, olhando ao redor, afoita, esperando ver alguém. Correu para a parede, ascendeu as luzes do quarto e olhou ao redor. O sussurro voltou dizendo “Kelly”. Naquele instante Celine decidiu que o medo deveria ficar em segundo plano. Ela saltou sobre a cama, pegou o celular, que havia deixado ali no momento de medo, e discou o número da irmã. Levou o celular ao ouvido e aguardou.
- Alô? – Disse a voz do outro lado.
- Kelly, Kelly, você está bem? – Indagou Celine.
- Celine? Sim, eu estou bem. O que houve?
- Nada. Não foi nada, eu só tive um pressentimento ruim. Onde você está?
- Estou aqui na biblioteca, terminando algumas coisas. Vou ligar para Dave e ele vai me levar para o dormitório quando terminar. – Explicou a garota.
- Entendi. Tome cuidado, e não demore, promete? – Implorou Celine.
- Não se preocupe, logo estarei em casa.
                As garotas se despediram e desligaram. Celine ficou sentada na cama, irritada, pensando no quanto havia parecido ridícula ao telefone. Era como se ela estivesse vivendo aqueles terríveis dias quando eram ameaçados pela maldade de Black. Ela desligou as luzes, se enrolou em seu edredom e logo pegou no sono.
*
                O zunido começou fino e indistinto, mas logo tornou-se algo forte, até conseguir acordar Celine com o impacto de um baque surdo, porém alto. Ela saltou na cama, suando frio e ofegando. Olhou ao redor, desnorteada, tentando se situar. Foi quando viu. A silhueta negra não tinha olhos, boca ou qualquer outro detalhe humano. Era apenas a sombra de um corpo feminino, alto e delgado. Era como se a sombra de alguém houvesse se levantado do chão e estivesse ali, encarando-a. Quando a voz saiu, não era um sussurro, mas um coro. Parecia que havia três ou mais pessoas falando em uníssono.
- Encontre Kelly, agora. Não há tempo a perder.
                Então o terror inundou Celine. Seu maior medo era que algo acontecesse à irmã. Ela pulou da cama, ignorando o fato de que a figura espectral permanecia parada ali. Se jogou em um par de jeans escuros, calçou suas botas e entrou em um casaco grosso, com capuz. Sacou o celular e os óculos e partiu em direção à porta, parando com a mão na maçaneta. Ela virou-se para trás, olhando diretamente para a sombra.
- Onde? – Indagou.
- Biblioteca – Disseram as vozes.
                No segundo seguinte ela estava correndo pelo corredor do dormitório. Ouviu a porta do quarto bater atrás de si quando alcançava as escadas. Enquanto descia ela digitava um número em seu celular. Logo estava em ligação. Ruby atendeu no segundo toque.
- Onde você está, Ruby? - Indagou afoita.
- Em meu quarto. O que houve?
- Preciso de ajuda. Kelly pode estar em perigo. Você me leva à biblioteca?
- Agora!
                Ela desligou o telefone e Celine chegou ao andar onde ficava o quarto de Ruby. Ela disparou em direção à porta, mas, antes que batesse ela se abriu. Ruby saía usando uma jaqueta de couro por cima de um casaco de flanela com capuz. Celine parou à sua frente.
- Onde ela está? – Indagou Ruby.
- Na biblioteca.
- Vamos!
                Ruby pegou Celine pelo braço e as garotas desceram em disparada o último lance de escadas. Debaixo de chuva chegaram ao carro de Ruby, um velho Ford Focus cinza, que pertencera à sua mãe. As garotas deslizaram para dentro do carro com rapidez, enquanto Celine explicava, entre respirações entrecortadas, sobre a sombra em seu quarto.
- Eu sabia que você era a melhor pessoa para entender isso, já que eu sei que você sabe sobre essas coisas de espiritismo. – Explicou Celine.
- Você fez a coisa certa! – Concordou.
                Ruby engatou a ré e pisou no acelerador com força, saindo de sua vaga com tanta velocidade que os pneus cantaram. Então engatou a primeira e começou a acelerar. A chuva dificultava tudo, e o interior do carro estava quente e cheirando a bancos velhos, devido à umidade. No entanto, Ruby conhecia as estradas da Universidade de Berk como as palmas de suas mãos. Cada desvio, cada buraco na estrada, ela havia memorizado.
                Em pouco tempo elas praticamente voavam pela estrada, levantando uma nuvem de água e lama atrás de si. Celine tentava ligar para Kelly, mas o celular dela não atendia. Seu coração começou a disparar, e ela fez a única coisa que poderia naquele momento, fechou os olhos e orou.
- Chegamos! – Anunciou Ruby, parando o carro bruscamente.
                Celine saiu de seu transe e logo as duas garotas saíam do carro, correndo debaixo da chuva. Elas subiram a escadaria que dava acesso às amplas colunas de mármore que seguravam o telhado de estilo grego da biblioteca. Passaram pelas colunas correndo, e logo alcançaram as portas duplas do lugar. Ruby as abriu em um rompante, entrando na frente de Celine. Não havia ninguém no amplo hall de entrada, mas as luzes estavam acesas.
                A biblioteca tinha um tom amarelado, devido as luzes e luminária dispostas ali. Duas dezenas de mesas de estudo, retangulares, se dispunham em duas colunas, no centro. Ao redor, estantes abarrotadas de livros formavam um “C”, com as mesas de estudo no meio.
- Olá?! – Gritou Ruby.
                As garotas chacoalhavam os braços e retiravam os capuzes, olhando ao redor. Nenhuma resposta. Elas começaram a caminhar e foram até o balcão onde deveria estar a bibliotecária. Ali estava um copo vazio de café e o monitor do computador ligado, junto a um bloco de anotações com alguns rabiscos. Elas caminharam um pouco ao redor do balcão, esticando os pescoços para tentar localizar alguém.
- Kelly estava aqui, certo? – Indagou Ruby.
- Isso! Eu vou tentar ligar para ela de novo.
                Celine discou o número, levou o celular ao ouvido e aguardou. Segundos depois, em sincronia com o som de chamada de seu celular, ela ouviu o toque do de Kelly, não muito longe dali. Ela e Ruby se entreolharam, assustadas. Caminharam juntas em direção ao som, que as levou a uma das diversas estantes apinhadas de livros. Ali, no chão de linóleo escuro e manchado, estava o celular de Kelly. Celine o pegou, com as mãos tremendo. Ela olhou para Ruby, o choque estampado em seu rosto.
                Nesse momento, Ruby notou pegadas molhadas no chão. Ela caminhou alguns passos de volta, refazendo seu trajeto e notando um par extra de pegadas molhadas. Eram grandes e de aspecto masculino. Pareciam ter entrado pela mesma porta que elas, mas não paravam aqui.
- Tem mais alguém aqui, Celine. – Ela apontou para as pegadas.
- Kelly? – Gritou Celine, em desespero.
                Ela levou as mãos à cabeça, puxando os cabelos e se sentindo hiperventilar. Começou a andar de um lado para o outro. Foi apenas quando Ruby a agarrou pelo ombro, com força, que ela voltou a se focar.
- Vamos seguir as pegadas e encontrar sua irmã. – Disse impetuosa.
                Celine acenou com a cabeça e prendeu o choro na garganta. Estufou o peito e começou a seguir Ruby. Não havia pegadas de Kelly, pois os sapatos dela não estavam molhados. Então elas seguiram as pegadas que haviam sido deixadas, por quem quer que estivesse ali. Logo estavam correndo novamente. As pegadas as levaram ao canto mais longínquo da biblioteca, que levaria à saída de incêndio, que estava aberta, deixando o ar gélido da noite entrar. Elas se aproximaram da porta e sentiram o frio as açoitar no rosto. Apenas a luz de um poste impedia que a escuridão fosse total ali. À frente das garotas havia um campo extenso e escuro, sem árvores ou nada do tipo, apenas escuridão e grama alta. Celine começava a perder as esperanças novamente. O que havia acontecido? Ela precisava encontrar a irmã.
                Então o sussurro estava ali novamente. Dessa vez não em seu ouvido, mas em sua mente. E não mais a voz sussurrada, e sim as vozes uníssonas de antes. Ela a sentia como uma presença, como se alguém estivesse parada a seu lado, encarando-a de muito perto.
- Eu posso te levar até ela... – Dizia.
                Então me leve, pensou Celine. Ela fechou os olhos por um instante, permitindo-se ser guiada. Repentinamente, como se num passe de mágica, ela sabia para onde ir. Era mais instinto que conhecimento. Não havia um plano, apenas a intuição crua e a certeza no peito de que aquele era o caminho.
- Me siga! – Gritou para Ruby.
                Então disparou. Os pés afundaram na lama escura e a chuva caía como canivetes em suas costas, mas ela não se importava. Correu pelo descampado aberto e escuro, como se sua vida dependesse disso. Ela conseguia ouvir as botas de Ruby guinchando atrás de si, mas não diminuiu o passo. Estava grata de ter trazido a única pessoa que não a bombardearia com uma centena de perguntas, que era mais ação e menos papo. Ela pensava no quanto era fraca normalmente, enquanto comparava a sua força atual com a Celine que era. “Sou forte” dizia para si mesma.
                Ela se permitiu lembrar de tudo o que havia enfrentado no passado. Uma lembrança dolorosa, na verdade. Pensou em quanta força ela havia encontrado dentro de si para sobreviver ao grande pesadelo de sua vida. Ela sentiu a adrenalina a envolver e a conceder toda a força de que precisava. Era como se ela pudesse ver no escuro, como se sentisse a localização da irmã. Seus pés conheciam o caminho que sua menta não estava ciente. Enfim, em meio àquela escuridão opressiva, ela a viu, parada de pé, no meio da tempestade.
- Kelly! – Berrou.
                Só então viu que a irmã não estava sozinha. Havia uma silhueta similar à que ela havia visto em seu próprio quarto, mas essa era feita de luz. Ela parou abruptamente, sentindo os pés escorregarem na grama enlameada sob si. Ruby, que vinha logo atrás, parou também. Elas observaram a figura, e Celine notou algumas diferenças. Essa silhueta era masculina, muito mais alta que um ser humano seria, e brilhava de forma limitada. A luz não irradiava, era como uma daquelas pulseiras de neon de festas de aniversário.
                Kelly estava parada à frente daquela silhueta, acenando com a cabeça como se estivesse em uma conversação, mas sua boca não se mexia. Celine estranhou estar conseguindo enxergar tão claramente em meio àquela escuridão. Então notou que a presença do homem era similar à da lua e, apesar de não iluminar na mesma intensidade, havia tornado aquela clareira mais visível. Kelly finalmente pareceu notar a presença da irmã e de Ruby. Ela virou-se para trás, lentamente, observando-as.
- Celine? – Indagou confusa.
- Kelly, venha para cá! Saia de perto dele, agora! – Gritou Celine.
- Não! Você não entende, ele é um aliado. Ele veio nos avisar de uma tragédia.
                Celine não conseguia acreditar naquilo. Foi quando a silhueta feminina que a havia visitado no quarto surgiu. Dessa vez ela também era feita de luz. Apesar de não ter nada ali que a desse a certeza de que era a mesma figura, o instinto dentro de Celine a dizia que era. Ela se aproximou um passo, com Ruby bem atrás dela. As duas se juntaram a Kelly, que segurou as mãos da irmã, que encarava fixamente as duas figuras.
                O homem e a mulher de luz se abraçaram, e ele permaneceu com o braço ao redor dos ombros dela, enquanto olhavam para as garotas.
- Nós somos oráculos de outro mundo. – Disse a mulher com sua voz múltipla – Viemos para alerta-las, todas as três, de algo ruim.
                As garotas se entreolharam.
- Celine, Kelly e Ruby, uma pessoa ruim chegou à cidade de Berk. Essa pessoa tem um plano maligno, de libertar nesta cidade uma criatura temível, que trará o caos e as desgraças para cá. Como protetores dessa cidade, é nosso dever alertá-las. Ele está a procura de algo que vocês devem proteger. – Disse o homem.
- O que exatamente é esse ser? – Indagou Ruby.
- Uma entidade. Ele vai precisar de um corpo físico para agir, e para isso ele vai procurar um sacrifício. – Respondeu a mulher.
- Por que nós? – Indagou Ruby.
- Pela força que adquiriram, e por já terem lutado contra a escuridão antes. – Respondeu o homem.
- Não é dever de vocês fazerem isso? – Questionou Celine.
- Não podemos agir no mundo físico. –Explicou a mulher.
- Como encontraremos essa pessoa? – Perguntou Kelly.
- Essa pessoa estará à procura de Alrisha. Encontre Alrisha e encontrará seu inimigo. – Disse a mulher.
- Mas o que é isso? O que é um Alrisha? – Indagou Celine.
                Mas era tarde. As figuras começaram a se dissipar como poeira ao vento. As garotas gritaram tentando alcança-las, em vão. Então uma luz as atingiu, fazendo com que cobrissem os olhos. Por reflexo, Kelly e Celine se esconderam atrás de Ruby. Elas forçaram a vista.
- Tire essa lanterna da minha cara, seu idiota! – Berrou Ruby.
                A pessoa obedeceu, revelando ser um dos seguranças do campus, ao apontar a lanterna para cima. Ao seu lado estava a bibliotecária, debaixo de uma sombrinha florida, com cara de preocupada. Ela era alta, com quadris largos, cabelos de um laranja similar a cenouras, e óculos finos e redondos.
- O que vocês estão fazendo aqui? – Perguntou o guarda.
                As meninas se entreolharam mais uma vez, desconfiadas.
- Isso não é importante. – Interrompeu a bibliotecária. – Para dentro, meninas! Agora!
                Elas obedeceram. Caminharam em silêncio até a biblioteca. Suas mentes ainda processando a nova informação. Alguém ruim estava ali. Mais um pesadelo se aproximava, e elas eram as escolhidas para impedir. Faltava tanta informação, havia tanta coisa para pensar. Seria este o início de uma nova história?
Continua...

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