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Ai, que dor do lado esquerdo do peito eu sentia quando ainda nem sabia qual era o lado esquerdo. Mas já a sentia; ela vinha acompanhada de bochechas esquentando de vergonha e mãos nervosas, inquietas. Um ritual já conhecido, porém, inevitável. Era ativado cada vez que alguém me golpeava com a pergunta: o que você vai ser? Essa sede de saber o que eu viria a ser em algum outro momento triturava meu senso de mim mesma. A pergunta era sempre feita com um tom capaz de expressar a indiferença pelo que eu já era, era como se me dissessem: o que você vai ser quando, finalmente, for alguma coisa?

Enquanto eu não era coisa alguma, me apressava em responder para não decepcionar ninguém: médica, advogada, dentista, cirurgiã, engenheira, veterinária. Deus é que me livre de fazer alguém pensar que eu eu não iria ser nada - e o próprio me perdoasse por todas as vezes em que menti só para ter alguma coisa para dizer. Era como se dizer, resolvesse o problema de não ser nada. Era como se dizer me desculpasse. Era como se aos 6;7;10;15 anos de idade, não sendo nada, eu teria que decidir  o que eu iria ser, minha redenção.

Decidi. Mais de uma vez, inclusive. Tantas vezes me perguntaram que a pergunta ecoou em minha cabeça até me fazer cair na armadilha da decisão. Caí em no vão daqueles que nada são: queria tanto ser alguma coisa que não era nada. Fui um monte de coisas, umas escolhi, outras me escolheram. Cursei isso e aquilo, trabalhei numa coisa e noutra, estudei cada ano uma coisa diferente. Decidida a calar a pergunta que não calava: o que você vai ser? Por mais que que fosse equilibrista, surfista, bailarina, professora ou escritora, sempre aparecia alguém: o que você vai ser? A fulana, o beltrano, a filha da vizinha de não sei quem, o primo do amigo da cunhada, a moça da padaria e o Faustão: todos eles eram alguma coisa, eu não. 

Tropeçando, segui decidindo e respondendo, cada vez com menos certeza, com menos enfâse. Sempre tive lá aquelas vontades que todo mundo tem, preferências aqui e ali, sonhos, utopias. Sempre tive coisas que caminharam comigo, agora mesmo tenho muitas. Mas a pergunta não era essa, a pergunta nunca foi direcionada ao que eu já era, ao que já sou. Uma pergunta trapaceira, arquitetada para o impossível, não importa onde eu esteja, não importa o que eu já seja, lá vem ela - se não for da boca de alguém, vem do meu reflexo no espelho: o  que você vai ser?

Sei lá o quê, foi o que eu quis dizer dia desses. Eu, já com diploma na mão, alguém me pergunta: mas e de agora em diante, o que você vai ser? Eu poderia ter dito professora. Queria ter dito. A dor do lado esquerdo veio acompanhada da boca cheia para anunciar mais essa certeza, a vontade de deixar claro que eu já sou alguma coisa. Mas aí percebi: quem pergunta, já não sabe? Sabe sim. Quem pergunta já está ali, me vendo em carne, osso e estrabismo. Quem atira essa pergunta já sabe que sou alguma coisa, que eu existo em 1,60m de alma, espírito, utopias, ideologias e amor, e, ainda assim, insiste em perguntar. Foi por isso que resolvi, dessa vez, não me categorizar: de agora em diante, sou um projeto de mim mesma, serei sempre um projeto - respondi. Sou alguma coisa em construção, é assim que posso evoluir e me transformar no que me couber ser a cada dia. De agora em diante, não sou nada. E eu sinto um alívio danado em não ser nada. 

Ane Karoline

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