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imagem: pinterest |
Sei lá quantos anos eu tinha quando eu vi, na tevê,
uma cantora encher o peito para dizer: eu não escolhi a música, a música me
escolheu. Na época, achei engraçado. Pensei até que música era o nome de uma
pessoa, uma agente, uma produtora musical.... Por que, afinal, como é que a
música, uma coisa tão abstrata - apesar de tão real - poderia escolher alguém?
E se existe isso, como é que a música poderia ter escolhido aquela mulher e não
me escolheu? Coisa estranha para fazer sentido na minha cabecinha de dez anos
atrás.
Ainda hoje, acordei com essa história na cabeça. Eu
tenho isso com os assuntos, grudo neles. Ou eles grudam em mim, e ficam fazendo
algazarra na minha mente até que eu me sente e escreva sobre eles. Não é sempre
que quero e, aí, é uma guerra. Invento tudo quanto é coisa para fazer, parente
longe para ligar, roupa suja para lavar, jornal para ler, para ver se o assunto
desgruda. Mas é uma coisa, não sai enquanto eu não escrevo. E, geralmente, eu
nem sei exatamente o que é, só sei que está lá, me aporrinhando para ser
escrito. É uma voz constante em minha cabeça que vez em quando grita, vez em
quando cochicha, mas está sempre lá com uma frase qualquer, dando início à
jornada de um personagem que eu ainda nem conheço. E o engraçado é que eu quase
me torno um personagem que, desde sei lá quando, vive nessa conversa de
carregar caderninho surrado para onde vai. Foi sem nem perceber, quando vi, só
sabia pensar escrevendo. Para pensar escrevia e escrevia o que pensava -
inventando um pouquinho aqui, adornando ali.
Criadora de histórias eu sempre fui, mesmo antes de
saber escrever. É um negócio sem data de início porque parece que nasceu quando
minha mãe me colocou no mundo, nasceu comigo e foi crescendo junto comigo.
Depois as letras escritas chegaram a mim e de uns tempos para cá, eu não sei
mais dizer onde começam e onde terminam as letras em mim: a escrita é maior que
eu. Quando começaram a me perguntar "Que cê tanto anota?" Eu sempre
respondi "Não sei". Até hoje não sei, suspeito que não saberei nunca.
Mas tenho saboreado isso desde que me ensinaram a juntar as sílabas.
Sempre foi tanta palavra, sinônimo e antônimo que
eu quero usar para descrever as coisas que acabo exagerando, sempre. Agora
mesmo, juntei tantas sílabas que já foram três parágrafos. Agora é rotineiro,
mas antes, quando via isso levava era um susto: já escrevi tudo isso! A
pergunta começou a martelar na minha cabeça: será que a escrita me escolheu?
De tantas outras perguntas que ainda tenho, essa,
pelo menos, calou. Agora eu já descobri. Pensei, escrevi, li e reli. Concluí
que: não. Não fui escolhida, agraciada, abençoada, e nem recebi um dom. Ninguém
é. A verdade é que todo mundo sente, todo mundo tem um turbilhão de emoções
dentro de si mesmo, todo mundo tem uma voz na cabeça que inventa, cria, grita e
sussurra. Igualzinho todo mundo tem sangue circulando nas veias. Essa coisa
que, de início, eu achei que era só minha: todo mundo tem. Eu sei, nem todo
mundo escreve. Mas aí é que está o segredinho, a diferença está em como essa
voz vai ser colocada para fora: se é pela música, por poemas, por bisturis, por
equações, por temperos, por contas, por dança, pela sala de aula, nos palcos, ou cuidando
dos filhos, isso depende de como é que a gente vê as coisas e como a nossa
contribuição cabe nesse mundo. A gente pode não ser escolhido mas pode ser
quase tudo o que quiser. Não fui escolhida, mas, de tanto gosto pelas palavras,
me fiz escritora. Escrevo dia e noite sem nem saber se alguém, algum dia, vai
me ler. Escrevo, sem saber se nas livrarias vai ter algum espaço para o meu
livro, humildezinho, escrito entre quatro paredes de reboco. Mas escrevo. Minha
voz é essa aqui, e se não houver espaço para ela, a gente dá uma empurradinha
que cabe.
Acho que é isso, esse texto aqui martelou na minha
cabeça para que eu viesse dizer a ti, sem nem saber se vai me ler, que a gente,
quando não é escolhido, tem que se escolher. A gente, mesmo quando não é
ouvido, tem que caminhar - tropeçando e levantando- batendo no peito para
dizer: minha voz é essa aqui, é isso aqui que eu sei fazer.
com amor,
Ane Karoline