Eu havia tentado de todas as
formas sair do trabalho no horário. Até havia colocado um alarme no celular
para ser lembrada. No entanto, mais uma vez eu tinha me perdido em pesquisas
e estudos. Para piorar a situação, havia começado a chover, e eu tinha
esquecido o guarda-chuva no carro. Organizei os papéis em minha mesa, guardei
os tubos e as substâncias com as quais eu trabalhara e tranquei tudo no
armário.
- Doutora Júlia, a senhora deveria ir para
casa. – Avisara o zelador, que havia entrado para limpar a sala.
Um trovão ribombou nos céus,
fazendo o prédio tremer. Um arrepio percorreu meu corpo. Me abracei, para
conter o tremor. Peguei minha bolsa, largada ao lado da cadeira. Lentamente
caminhei para fora da sala. Despedi-me do zelador com um aceno de cabeça. O
corredor em direção ao elevador estava vazio e escuro. Apenas a luz dos
relâmpagos lá fora iluminava o local. Não consegui evitar em pensar no quão
miserável era a minha vida. Era sexta-feira à noite. Todas as minhas amigas estavam
em algum encontro, ou festa. Eu, por outro lado, havia perdido a hora de ir
para casa, pois ficara entretida em pesquisas. Me perguntava o quão triste deve
ser a vida de uma pessoa que trabalha duas horas a mais em uma sexta, quando o
elevador chegou.
Aproveitei o curto tempo que
levaria para chegar do décimo nono até o primeiro andar e saquei o celular da
bolsa. Uma rápida checagem revelou alguns convites para sair, de minha irmã e
algumas amigas. Uma mensagem de minha mãe, perguntando onde eu estava.
Responderia depois. Resolvi checar outra rede social. Uma conta específica, de
um certo rapaz específico. Sentia-me ridícula, mas olhei as três últimas
postagens dele. As mais recentes.
Ele estava com alguns amigos em
algum bar. Pela marcação do local, parecia próximo. Meu dedo pairou sobre o
botão “curtir” por alguns segundos. Irritada, não curti a postagem. Ao
contrário, desliguei o celular e encarei as paredes espelhadas do elevador,
inquieta. A imagem no reflexo precisava pegar um pouco de sol. Curtos cabelos
negros, na altura dos ombros, lisos e finos. Passei os dedos entre as mechas,
tentando organizá-las. Os olhos eram pequenos, cheios de delineador; sobrancelhas finas, que davam um ar sisudo, nariz fino e lábios quase
inexistentes. Um rosto em formato de coração, e uma pequena pinta ao lado inferior do
olho esquerdo.
Foi apenas nesse instante que
notei não estar usando meus óculos. Xinguei mentalmente para a possibilidade de
ter que voltar para busca-los. Agachei e procurei freneticamente dentro da bolsa.
Nada. Fiquei tão irritada que comecei a praguejar em voz alta. Pressionei o
botão para que o elevador parasse. Então pressionei o do décimo nono andar. Minha
mãe detestava o meu hábito de resmungar quando estava estressada. Em minha
mente tentava lembrar onde havia visto meus óculos pela última vez.
Provavelmente estavam embaixo de algum papel em minha mesa.
Cogitei a possibilidade de
deixá-los lá. Não era viável. O laboratório só abriria novamente na segunda, e
eu não podia ficar esse tempo todo sem eles. Principalmente se ia dirigir à
noite, debaixo de chuva. Os minutos pareciam horas. Quando enfim as portas do
elevador se abriram, um terror sem sentido apoderou-se de mim. O corredor
parecia agourento, do meu ângulo de visão. Abracei-me, por instinto. Minha
mente me dizia para chamar pelo zelador, em busca de conforto. No entanto, não
quis parecer fraca. Eu era adulta, já passara dos trinta. Não deveria me
comportar como uma garotinha. Afinal, meu medo era irracional. Não havia nada a
temer naquele ambiente. Eu estivera ali até poucos minutos atrás.
Respirei fundo e consertei a
postura. Caminhei confiante em direção à minha sala. Apenas o ruído das pontas
dos meus saltos atingindo o piso era audível. Foquei minha visão na porta de
minha sala. Apenas alguns passos e eu estaria lá. Um trovão rasgou o céu e o
estrondo quebrou minha compostura, fazendo-me dar um gritinho. Em uma atitude
completamente humilhante corri em direção à minha sala, entrando em um rompante
e fechando-a atrás de mim.
Meu coração batia com tanta
força que eu podia senti-lo. Com as costas apoiadas na porta, me acalmei.
Respirei fundo algumas vezes, tentando me convencer do quão cética eu era.
Enfim acendi as luzes e comecei a procurar. Quase derrubei os óculos no chão,
enquanto procurava apressada por eles. Estavam embaixo de alguns papéis, como
eu havia pensado. Coloquei-os imediatamente no rosto, aliviada. Tudo acabara
dando certo. Mais calma, virei-me em direção à porta, planejando ir embora.
Outro gritinho escapou, quando o zelador surgiu na porta.
Ele não havia feito nenhum
barulho. Pensando melhor, eu havia fechado a porta. Como ele a abrira sem fazer
barulho, era um mistério. Respirei fundo novamente. A mão no peito, devido ao
susto.
- Eu não ouvi o
senhor! – Disse de forma rude.
Ele não reagiu. Apenas continuou
parado ali. Estático. Olhei para cima, esperando resposta. Contudo, ele
continuou parado. Os olhos vidrados, me encarando. Algo estava me incomodando
na postura dele. Ele parecia flácido. Talvez até pálido. Me recompus, encarando-o
seriamente.
- Senhor? Está tudo
bem?
Quando o corpo dele caiu para
frente, inerte, finalmente entendi que havia algo muito errado ali. Não
consegui prestar atenção ao corpo. Isso por que o assassino dele estava bem
ali, na minha frente. Ele estivera segurando o corpo do zelador esse tempo
todo. Agora que o corpo havia caído, eu pude vê-lo. Finalmente me permiti
perder totalmente a compostura, dando um berro. Corri miseravelmente ao redor
da minha mesa, tentando colocar alguma distância entre mim e...aquilo.
Meus olhos percorreram
rapidamente as extremidades. Era humanoide, com certeza. No entanto, era mais
alto que um humano comum. A pele tinha uma aparência gosmenta, translúcida e
até reptiliana. Ele caminhou lentamente, ignorando meu grito. Ele sabia que
ninguém escutaria. Como se estivesse se preparando para dar o bote, ele se
inclinou e fico de quatro. Um grunhido de puro deleite saiu de sua garganta. O
pânico invadiu meu ser, começando pelo estômago. Todo o meu ceticismo parecia
ter ido embora.
Em uma reação de terror alcancei
as bordas da mesa e usei toda a minha força para lança-la para cima. A coisa se
assustou, correndo para um canto, por reflexo. Minha mente funcionava em modo furtivo. Vi a
porta e me lancei em uma corrida frenética. Sequer parei para fecha-la. Detestei o fato de estar usando saltos altos. O corredor parecia
se estender para sempre. Quando enfim cheguei ao elevador pressionei o botão
para fechar as portas insistentemente. Arfando, encarei o corredor, tentando
identificar meu perseguidor.
Estava escuro demais para
distinguir sua forma, mas seus olhos eram plenamente visíveis na escuridão.
Eram de um branco brilhante. Pelos seus olhos, pude ver que ele se pusera ereto
novamente. As portas do elevador lentamente se fecharam, me transmitindo alguma
segurança. Tentando recuperar o fôlego, me recostei na parede traseira do
elevador e respirei fundo algumas vezes. Foi quando o elevador parou,
repentinamente, com um solavanco.
Naturalmente o pânico me
alcançou novamente. Corri até o painel e tentei usar o interfone para falar com
a portaria. Algo que eu já deveria ter feito, gritou minha mente racional. Não
obtive resposta, o que me frustrou. Foi apenas quando as luzes se apagaram no
elevador que notei não estar em segurança. Enquanto lutava para permanecer
de pé, senti uma segunda respiração dentro do cubículo. Fechei os olhos.
- Não adianta correr! –
Ele sussurrou.
-Adolfo Rodrigues