imagem: Ane Karoline

Há alguns anos, quando iniciei minha graduação, ouvi falarem sobre Mia Couto. Entretanto, se por destino ou coincidência não sei, acabei me pondo a ler Mia Couto apenas ano passado quando, agora vejo, eu me fiz como gente o suficiente para compreender a magnitude de suas palavras. A escola dos livros aconteceu por acaso: recebi os livros da equipe da Companhia das Letras e me pus a lê-los. Com o que me deparei, não tenho palavras para descrever.

Nunca havia lido um romance histórico antes e, portanto, o gênero foi-me totalmente novo e revelador, retificando a minha ideia de uma literatura que vai muito além da estética, uma literatura com uma função histórica e um potencial social inigualáveis (vide também literatura política AQUI). Pois bem, vamos aos livros. 

A trilogia foi nomeada de As areias do imperador e é composta, em ordem cronológica, pelos livros: Mulheres de Cinza, Sombras da água e O bebedor de horizontes. Em linhas gerais, a trilogia acontece no sul de Moçambique, quando era governada pelo rei Moçambicano Ngungunyane — o último dos líderes do Estado de Gaza. Desta forma, Mia Couto traça a trajetória dos dias finais do reinado do Leão de Gaza, destronado pelos Portugueses. 

No primeiro livro, Mulheres de Cinza, a protagonista que guiará o leitor é apresentada: Imani, de etinia Vatxopi. Além da poética voz de Imani, o primeiro livro também é composto de cartas escritas pelo soldado Português Germano de Melo para Portugal. No primeiro momento, Imani apresenta sua aldeia, alguns de seus costumes familiares e o cenário Moçambicano. Em seguida, por ser a única falante de Português da região, a moça e a família ficam encarregados de receber Germano de Melo e encaminhá-lo para o quartel Português da aldeia. É importante ressaltar que a família de Imani se via divida entre receber bem o soldado português ou não. Vivendo em dias de guerra e vendo os seus sendo dizimados pelo exército do rei de Gaza, o pai e o irmão mais novo de Imani acabam por acolher bem Germano, na esperança de que Portugal cuide da província, derrote o rei de Gaza e os proteja. Entretanto, a cada carta do soldado, vai ficando claro para o leitor sua total incapacidade de lidar com Ngungunyane.

imagem: Ane Karoline


O segundo livro se inicia já de forma bem mais caótica: a guerra causou na família de Imani várias perdas, o estado de Gaza está em crise e Germano de Melo sofreu um grave acidente. Neste livro, as reflexões de Imani a respeito de sua vida, sua juventude, sua relação com Germano (a qual começou a tomar proporções românticas) e sua feminilidade. Imani, seu pai, Germano e sua amiga Bianca acabam sendo recebidos em uma igreja para que seja tratada a enfermidade de Germano. Boa parte acontece na ilha até que o conflito, de fato, é apresentado. Este livro tem papel fundamental na trilogia justamente por ser o que apresenta a queda do rei de Gaza.

No terceiro livro, Ngungunyane é levado para Lisboa e muito melhor se percebe as intenções de Portugal. Após a queda do rei, Imani, em sua maestria com as palavras, reflete que:

Não era apenas um imperador vencido que os portugueses exibiam. Era África inteira que ali desfilava, descalça, rendida e humilhada. Portugal precisava daquela encenação para desencorajar novas revoltas entre os africanos. Mas necessitava ainda mais de impressionar as potências europeias que competiam na repartição do continente. 

Nesse sentido, esse livro foi, para mim, o mais dilacerador. Mostra, ainda que em uma escala isolada, a monarquia Portuguesa explorou o continente africano, como despatriou os africanos e fez deles escravos. Imani, por exemplo, obrigada a aprender português na infância, é colocada em situação de traição para com seus conterrâneos, ficando em situação de conflito consigo mesma. 

Assim, a maior parte do terceiro livro acontece durante a viagem para Lisboa, mas muitas descobertas são feitas durante esse tempo de enclausuramento dos prisioneiros africanos. 

Minha opinião

Muito, e cada dia mais, tem me interessado saber a história do povo brasileiro e, por isso, tenho me perguntado muito sobre as raízes, sobre o suor e o sangue sobre os quais o país foi construído. Quando li, então, a trilogia, foi como dar um salto lá trás e para olhar uma brecha do que ocorreu no continente africano com a chegada dos colonizadores europeus, como o povo africano foi dizimado, desrespeitado e humilhado. A trilogia é uma aula de história daquelas bem difíceis de serem digeridas, só que escrita pelas mãos brilhantes de Mia Couto; uma aula de grande importância para que possamos dar um passo para trás para conseguir vislumbrar ao menos um pouco da riqueza do continente africano, para que possamos ver a riqueza dos seres humanos quando conectados à natureza, à energia de todos os outros (vivos e mortos), a si mesmos. É uma trilogia que traz uma chance desconstruir essa imagem pobre e torta do continente africano que temos hoje, a imagem que a personagem Bianca, branca e italiana, descreve como:

Noutros lugares (...) as crianças choram como quem aprende a rezar: esperam que as coisas melhorem. As crianças africanas não. Choram sem voz, choram para si mesmas, como se vivessem o seu último dia. As lágrimas imitam-lhe as barrigas: inchadas mas sem nada dentro. 

Nota: 10/10 

Com amor, 
Ane Karoline

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