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Se tivesse como descrever, a onomatopeia seria: tum, tum, tum. Meu coração parece bater mais devagar quando começa, todos os dias de manhã, o vizinho gritando e batendo alguma coisa no chão, é um tum, tum, tum sem parar. A cadeira do meu quarto rangendo quando eu subo nela para pegar um troco no cofre, o pai puxando o braço da criança na rua, o grito da criança com o bracinho esticado, a professora gritando quando poderia falar baixo, um homem desconhecido na rua me chamando, me chama para quê? Prefiro nem responder e sinto meu coração em um tum, tum, tum desenfreado, se eu enfartasse, cessaria. Alguém bate a porta com violência, por que não fechar com gentileza?  Um zum, zum, zum dentro do ônibus, um senhor gritando alguma coisa sobre Jesus, será que Jesus gritaria? A senhora do meu lado me cutuca e diz que ele tem razão, que viado é coisa do cão, eu olho para ela e percebo as marcas da hemodiálise, penso que se ela precisasse de sangue, eu poderia salvá-la; alguém sempre me diz que ó negativo é o sangue que salva, mas eu sou fraca para agulhas, era pensar em doar sangue para ficar fraca, o tum, tum, tum aumentar e a enfermeira me mandar para casa por estar muito alterada. Minha fraqueza é ser alterada, eu estou sempre muito alterada e isso parece ser um inconveniente para quem não consegue sentir tanto.

O inconveniente para mim já é quando escuto que não é para tanto. Tem alguém berrando no ouvido de uma criança de quatro anos bem ali ao lado, o rapaz que estudou comigo chama a namorada de vagabunda porque ela aparece usando saia justa no churrasco, mataram um menino negro que na frente do shopping limpava carros, e não é para tanto? Eu tenho certeza absoluta que meu coração vai bombear tanto sangue tão lentamente que vou explodir como se fosse um dente de leão, em mil pedacinhos translúcidos. Tem alguém dizendo que a Amazônia deve ser vendida, que os ribeirinhos são inúteis para a evolução social e que os índios não têm direito a nada; mas não é para tanto, me dizem. Alguém bate no meu ombro e diz que eu não preciso ter uma opinião sobre tudo, que eu devo ser menos afetada. Uma criança de dez anos de idade me pergunta se só crianças brancas sabem ler livros grandes e eu vou ser menos afetada? Engulo em seco o incômodo, como se engole uma gosma azeda de quando se está gripado; cada vez que ouço um não é para tanto, é uma facada. 

À facadas se mataram dois japoneses semana passada e alguém usou isso para defender o porte legalizado de armas, quando questiono a fala de um homem adulto da minha família, me dizem que estou exagerando e criando caso, afinal, não é para tanto. O tum, tum, tum nos meus ouvidos fazem parecer que meu coração pesa uma tonelada; eu quero falar também, quero poder dizer que é para tanto sim, que o bullying na oitava série matou vários sonhos meus, quero que ouçam o meu grito de humanidade como a manifestação política que ele é, e não como um dos sintomas da TPM. 

Grito, berro, soco, tapa, choro, cheiro de bicho morto, duas, três horas em pé em um ônibus sujo, livros bagunçados, suor gotejante, menininhas amarguradas, correria, tiro,  gritos, tiro, tiro, silêncio. O incômodo no meu peito parece crescente e parece maior que eu, parece querer tomar conta do meu corpo inteiro, possuir a minha alma, um tum, tum, tum lento e ritmado, a visão alterada pelo medo, pela ânsia de acertar, pela amargura de errar, tudo, tudo isso eu posso aguentar, sobretudo porque eu não posso falar. Vivo incomodada, afetada, entrecortada, o coração na mão, mas permaneço calada porque prefiro agonizar que perceber que, para quem não sente, tudo é pequeno demais, tudo é mínimo, é mimimi. Antes enfartar, morrer engasgada pelo meu pranto que ouvir que não é para tanto. 



Com amor, 
Ane Karoline -
texto do desafio de 24 textos em 24h


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