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Eu nunca gritei com você, né? Já gritei por muitas coisas: paz, igualdade, humanidade. Já gritei com muitas coisas: raiva, medo, e com uma bandeira na mão. Mas nunca gritei com ninguém em específico, mesmo que eu tenha me exaltado, porque o grito ultrapassa o meu espaço e atinge o outro. E eu sempre tive uma repulsa danada de gente que invade o espaço do outro. Essa repulsa me empurrou e eu combinei comigo que nunca se deve invadir o espaço de ninguém. Ralhei tanto comigo para não invadir o espaço alheio que acabei fazendo o contrário, deixei que invadissem o meu.

Foi por ser boa em matemática que errei nas contas e perdi a dose, exagerei. Não sei quando começou, mas a primeira vez que reparei foi assim: fiquei me roendo por dentro para dizer que b deveria ser diferente de zero. Eu os via calculando, recalculando, amassando folhas e folhas sem pauta,  procurando um número complexo sem entender que a parte imaginária não pode ser multiplicada por zero, o erro era insistir no zero. Quando eu abri a boca, para tentar ajudar, você me disse, sem levantar os olhos: meu bem, deixa a gente calcular aqui, cálculo 1 reprova muita gente. Cálculo 1, engraçado, era onde eu deveria ter parado. Deveria ter parado de me anular no primeiro cálculo em que percebi uma incongruência, na primeira vez  em que topei com os números inteiros e percebi que +1 e -1 se anulam: que se eu me jogar, otimista, em uma relação com alguém que não tem nenhuma intenção de me amar, eu vou me anular. É ciência. 

Era o que eu deveria ter feito: parar de me anular. Mas nem sempre a gente faz o que deve ser feito e eu tratei de me convencer que matemática era uma coisa sua, não queria tirar isso de você. Fingia não saber como derivar, não entender o resultado da força sob a massa e a aceleração para que você tivesse o que, feliz, me explicar. É bobagem pura, agora eu sei. Como também sei que só descobri isso, só descobri a minha insensatez com sua ajuda. Entenda, era hábito antigo meu: insistir em me diminuir para elevar as pessoas ao meu redor, deixá-las felizes. Já cansei de esconder nota boa para não ofender os amigos, cansei de fingir não saber calcular para não competir com os meninos, já calejei de tanto cair em jogo de futsal para deixar que minhas amigas vissem que, sim, elas eram melhores que eu. Já tropecei em aula de dança para não deixar alguém constrangido sozinho, já desafinei para encorajar gente mais tímida a cantar, já até ignorei uma aprovação no vestibular porque uma amiga não havia passado. Loucura, eu sei, mas só percebi que isso era loucura com você, porque você foi além de todas as outras pessoas. Você conseguia me fazer sentir culpada por ter qualidades que você não tinha e, de repente, eu comecei a desacreditar de mim. De tanto fingir que era incapaz, chegou um dia em que eu não sabia fazer mais nada.

Eu queria mesmo era bater no peito, hoje, e dizer que fazer o que fiz - me anular, me diminuir, me decompor em pedacinhos- ajudou alguém em alguma coisa. Queria que os aniversários que perdi, que as vezes que deixei de me colocar, que as vezes que ouvi mentiras quando já sabia a verdade, queria que tudo isso tivesse servido para alguma coisa e tivesse sido um presente meu para as pessoas. Mas não foi. Não há heroísmo nenhum em se anular em prol de alguém, o amor genuíno jamais pediria isso. Só percebi isso quando percebi que não havia amor entre nós, o que havia era um anseio meu em agradar as pessoas a qualquer custo,  isso não é amor. 

Acabou que nunca presenteei ninguém com esse meu tal altruísmo distorcido. A única coisa que consegui dar às pessoas foi o direito de me diminuir, dei espaço para que me dissessem coisas que eu não merecia ouvir, me dessem tarefas que não cabiam a mim, e um tratamento muito inferior ao que me é digno. Hoje, não posso dizer que estou orgulhosa mas agradeço a você e a todas as pessoas que me fizeram sentir inferior, vocês me mostraram que a única coisa que a gente ganha quando se diminui para agradar alguém é a consequência de não cumprir a missão mais importante de todas: cuidar de si mesmo.

Ane Karoline

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